Gastão Reis, colunista de O DIA divulgação

Tenho insistido, vez por outra, sobre a necessidade do debate civilizado em nossa mídia. Não se trata de saudosismo da praça pública grega em que os homens livres expressavam abertamente suas ideias e propostas. No Brasil, até o início da segunda metade do século XX, liberais e conservadores, esquerda e direita seguiam a tradição milenar da liberdade de expressão. Aos poucos, foi-se implantado uma
mentalidade de censura disfarçada e, mais recentemente, de cancelamento.
Pois bem, no domingo passado, 12/11/2023, aconteceu algo diferente na linha do debate civilizado em que quatro articulistas passaram o pente-fino nas questões do último Enem. Três deles denunciaram sua tendenciosidade em direção ao pensamento único. Foram eles Carlos Alberto Sardenberg, Pablo Ortellado e Eduardo Affonso. Rafael Pinna foi o discordante.
Antes um pequeno introito no espírito que perpassa o tema. Cerca de 10 anos atrás, numa conversa com Ton Martins, antes de me entrevistar, ele me relatou uma conversa que teve com sua filha em que ela lhe fez uma pergunta que lhe deixou perplexo: "Pai, posso mentir para tirar boa nota na prova de História?". É que ela conhecia os fatos pela convivência familiar, mas o professor de esquerda tinha inventado uma narrativa alternativa como sendo a correta. Nos dias atuais, o mesmo vem acontecendo com meu neto mais velho, aluno de um colégio de renome no Rio de Janeiro. O perplexo desta vez fui eu.
Voltemos aos nossos colunistas.
Sardenberg nos diz muito em seu título: "A doutrinação do Enem". Ele faz a ressalva inicial de que a prova seria neutra, como insiste Rafael Pinna, que faz a defesa do Enem, afirmando que o atual foi o que sempre tem sido. Sardenberg seleciona algumas questões para comprovar a ausência de neutralidade. Na de número 61, citando Michel Foucault, somos informados que "o capitalismo introduz ilegalidades em todas as camadas da sociedade". Claro que a ditadura do proletariado, como sabemos, fez coisas muito piores.
Outra questão, a de número 60, critica o Google e "ataca a mágica do Google e sua inteligência artificial". O texto nos informa ainda que os trabalhadores do Google são limitados em sua criatividade e que ganham muito mal. Uma visitinha ao Google torna transparente que o oposto é a verdade. É visível, portanto, a imposição de uma "verdade" cujo oráculo é Foucault.
Pablo Ortellado intitula sua coluna com a expressão 'Lugar de fala'. E nos faz entender o que se pretende com esse conceito limitador. Na concepção da esquerda, nas palavras dele, "em assuntos que envolvem opressão, apenas as pessoas de grupos oprimidos devem falar". E emenda: "O lugar social de alguém afeta seu entendimento, sua compreensão das relações de opressão". Cita ainda um artigo de Linda Alcoff, "The problem of speaking for others" ("O problema de falar pelos outros", em que "ela argumenta que as hierarquias sociais produzem efeitos de verdade diferentes").
Note, caro leitor, que, por trás desse discurso, está a luta de classes. Quem pertence à classe opressora, mesmo discordando dela, não tem direito à voz. É como se a Princesa Isabel não pudesse combater a escravidão e lutar pela abolição. Basta imaginar o que teria sido calar uma pessoa como ela que assinou a Lei do Ventre Livre e a Lei Áurea, e propiciou inúmeras alforrias.
Eduardo Affonso, no artigo "Objeção de Consciência", coloca o dedo na ferida ao afirmar que para "...acertarem algumas questões, muitos terão que se manifestar contrariamemte àquilo em que acreditam". Mais ainda: "...Para pontuar bem, é preciso rezar pela cartilha do governo de turno". E é assim que o aluno é adestrado "para escrever o que os corretores querem ler". Ou seja, é pura doutrinação com visível viés
de esquerda em que o respeito pelos fatos vira narrativa para impor uma visão ideológica da História.
Na oposição, em defesa do Enem como ele é, está Rafael Pinna com seu texto intitulado "Resposta errada ao Enem", em que ele rema contra a maré das três críticas pertinentes. Ao mencionar os textos de apoio para as perguntas e respostas, e estas para aferir se o aluno compreendeu as ideias do autor, ele nos diz o seguinte: "Neste ano, apareceram nomes como Sartre, Foucault, Adorno e Horkenheimer, Milton Santos
e Paulo Freire. Noutras edições, de Karl Marx e Adam Smith...". O único autor citado que não é de esquerda é Adam Smith. Ou seja, foi uma goleada de 7 a 1. Fica evidente o viés de esquerda nos textos selecionados. Ato falho. Será que ele não se deu conta disso?
O lado curioso em todos os artigos é que nenhum dos autores mencionados cita o nome de Antonio Gramsci, que bem merece o cognome de O Sombra. Em artigo meu publicado no Estadão, em 29/10/2014, intitulado "Intelectuais Inorgânicos", eu explicitava a técnica de tomada do poder por Gramsci. Para ele, não seria suficiente controlar os instrumentos de poder da sociedade política: a polícia, o Exército, o sistema legal etc. Era preciso ir além e se assenhorar, primeiro, dos pilares em que se assenta a sociedade civil: a família, o sistema educacional, os sindicatos etc.
Eu esclarecia, mais ainda, a técnica de Gramsci. Em desacordo com Marx e Lênin, Gramsci dizia que a primeira é reino da força e a segunda, do consentimento. Feita a cabeça da população, sem que ela sentisse, na moita, a conquista da sociedade política estaria validada. Aqui entrariam em ação os intelectuais ditos orgânicos em contraposição aos tradicionais, que estariam por ora no manejo dos cordões que perpetuam, via cultura, a manutenção do regime capitalista.
Já deu para perceber claramente o que está ocorrendo no Brasil atualmente. A verdade é que já foi longe demais. De fato, os intelectuais tradicionais perpetuam a sociedade de mercado, mas também a democracia e a liberdade, impossíveis de serem mantidas quando os poderes político e econômico estão sob a batuta de um comando único. Mais detalhes no meu vídeo com link abaixo intitulado "A enganação de Gramsci".

Digite no Google meu vídeo "A enganação de Gramsci". Ou pelo link: https://www.youtube.com/watch?v=gaQbFqV07zM.

Gastão Reis
Economista e palestrante