Fausto Fawcett, cantor e compositorJodele Larcher

Fausto Fawcett é cantor, compositor, jornalista e escritor. Suas composições mais famosas são o sucesso de 1987 "Kátia Flávia, a Godiva do Irajá", incluída em trilhas sonoras de novela e filmes; "Rio 40 Graus", imortalizada por Fernanda Abreu, em 1992; e "Balada do Amor Inabalável", sucesso de Skank em 2000. Começou sua carreira musical em 1986, por sugestão de um de seus amigos de faculdade, o cineasta Cacá Diegues. Lançou, entre outros livros, "Santa Clara Poltergeist", "Básico Instinto", "Copacabana Lua Cheia" e "Favelost".
SIDNEY: O senhor sempre teve um atento olhar aos costumes do Rio de Janeiro. Qual é a sua impressão da cidade atualmente?
FAUSTO FAWCETT: O Rio sempre foi um purgatório da beleza e do caos. Depois da Segunda Guerra, prevaleceu uma imagem, uma propaganda da beleza, da festa que realmente existe, das malandragens dos saberes, de rua, das promiscuidades religiosas. Então houve um tempo em que isso prevaleceu, anestesiando, deixando de lado a promiscuidade mais barra pesada que era, sempre foi, entre o que era legal e ilegal. As fronteiras entre os dois sempre foram frágeis, e isso de um tempo para cá ficou mais explícito, mais escancarado. Você tinha, até um tempo atrás, um tumor dentro da cidade oficial, institucional, mas agora é o contrário. Cidade institucional, oficial, é que está situada num canto desse tumor, entendeu? É uma atualidade exacerbando o que sempre existiu, desde o golpe da República, lá em 89, no final do século XIX, desde relações de "Estácios" e "Mens de Sás" e tamoios e tal, se a gente quiser ir mais fundo ainda. Sempre foi purgatório da beleza e do caos, e agora mais do que nunca. A beleza tem que gritar no meio de toda a balbúrdia.
A música "Kátia Flávia, a Godiva do Irajá" virou um clássico. Muita gente percebe como uma crítica social ousada. Ela serve para o momento atual?
Kátia Flávia é um personagem que está multiplicado e turbinado. O que não falta são personagens femininos, barra pesada, empoderadas, pululando tanto no mundo do crime quanto em outras paragens. Ela está mais atual do que nunca. O personagem kátia Flávia continua sendo o personagem feminino mais poderoso da Música Popular Brasileira.
O chamado "submundo carioca" é atraente para o criador de cultura?
A expressão "submundo" fica meio caduca porque diz respeito a lugares abandonados ou ocultos, com uma certa estética e comportamento desviante, enfim, guetos que em todas as grandes cidades do terceiro e do primeiro mundo, durante um bom tempo, já serviram realmente de inspiração porque artistas, pensadores, filósofos etc são muito ligados com o negativo operante do ser humano, vamos dizer assim. Só que agora esse negativo operante está bastante espalhado. Há promiscuidade entre o oficial e o não oficial, entre o legal e o ilegal - estão completamente sumidas as fronteiras. Isso no mundo todo, não apenas no Rio de Janeiro e no Brasil. Estado, mercados, finanças, tecnologia, indústria farmacêutica, indústria bélica, criminalidade, tudo está muito amalgamado, misturado nas políticas engolidas por esta situação. Eu diria que, especificamente no Rio, não há e, no mundo todo, já não há submundo. Não tem um lugar que sirva de farol crítico da situação social porque tem muito território ferrado. De 8 bilhões (estimativa de pessoas no mundo), com certeza, metade vai ser desperdiçado e virar "walking dead", zumbi. O mundo todo está, de certa forma, submundanizado, mas, com seus núcleos de sobrevivência, suas vontades de potência de vida lutando desesperadamente para acontecer. O Rio não tem um lugar específico, hoje em dia, porque a inspiração está em todo lugar agora, das redes sociais às favelas, territórios abandonados e não abandonados. E, principalmente, as pessoas que estão à deriva viraram vetores obscenos com sentimentos grotescos. Não existe mais submundo.
O Rio sempre foi a vitrine do Brasil. Na sua opinião ainda vale esta imagem?
Vale completamente - uma vitrine rachada, claro. Toda a convulsão social, confusões, iniciativas festivas, grandes eventos, perigos e instabilidades, esta vertigem que é a cara da cidade, meio sitiada, reflete e escancara muito do Brasil. Inclusive exportou para o resto do país, juntamente com São Paulo, o fruto da negligência e politicagem, desperdício de pelo menos 40, 50 anos em relação às políticas de segurança, às criminalidades, mas principalmente a falta de projeto e a incrível capacidade de sabotagem de algum projeto nacional por parte dos impressionantes "Odoricos Paraguaçus" que compõem a política brasileira - agora mais ferozes, estúpidos e ideológicos do que nunca. Então, o Rio escancara isso e, claro, continua sendo a vitrine do Brasil, caos na beleza, beleza no caos, só dá purgatório.
O modelo de difusão cultural do Rio permite ousadias criativas?
Não sei se tem um modelo de difusão cultural, pelo menos uma difusão de cenas e movimentações culturais. O que existe é isso: é uma cidade-evento. Agora parece que vai rolar um investimento novamente pesado em revitalizações de certas áreas, como a Praça XI, modificações profundas. Mas não acho, por exemplo, que será o que tinha nas décadas de 80 e 90, em que uma emissora carioca e as gravadoras aqui permitiram que houvesse centralização de uma certa difusão cultural no Rio de Janeiro. Os focos culturais estão mais dispersos e fragmentados. O principal mesmo que está acontecendo é o Rio se transformar em uma cidade de evento, tendo Copacabana como a sua principal plataforma por causa da praia.
Você vive que momento da sua vida artística?
Estou vivendo um momento excelente. Estou relançando o livro "Favelost". A primeira edição foi lançada em 2012. Agora vai sair pela editora Avec, com algumas atualizações. É um livro que fala de um lugar, uma espécie de Serra Pelada, um lugar para onde vão as pessoas que estão insatisfeitas com o Brasil e suas vidas - uma espécie de "Canaã cibernética e alucinada". Em fevereiro, com o grupo "Chelpa Ferro", formado pelos artistas plásticos Barrão e Sérgio Mekler e o músico Thiago Nassif, vou excursionar com o espetáculo "Pesadelo Ambicioso", inspirado no meu penúltimo livro que tem este título. O livro "Favelost" também vai virar show, a partir de abril, com a turma que atualmente faz o espetáculo "Animakina": Paulo Beto, Mari Crestani e Jodele Larcher. Ainda tem outros livros e trabalhos musicais que estão a caminho. Fim de ano animado e início do ano que vem também.