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Rafael Nogueira: Relativismo e história
Chamamos o relativismo aplicado à história de historicismo, método que procura fazer do tempo o princípio explicativo da vida humana
As grandes navegações fizeram com que os europeus passassem a valorizar mais o relativismo. Essa primeira globalização impactou as mentes europeias, que se viram diante de novos povos em novas terras. Era fabuloso conhecer uma arara ou ver de perto um tupi. Mas esse espetáculo era restrito; a maioria só ouvia rumores, ou, caso dos mais abastados, colecionava pedras polidas, desenhos e penas.
Alguns opúsculos faziam sucesso, entre os quais o do francês Jean de Lery, e o do alemão Hans Staden, contando aventuras entre os nativos do Brasil. Só se falava nisso no século XVI. Mas havia também quem refletisse bastante sobre o significado desse encontro cultural. Michel de Montaigne, um nobre francês aparentemente com muito tempo livre, resolve então escrever o que lhe vem à mente, sem compromissos com a política, ou com a moral ou com os bons costumes; só queria escrever.
Esse blogueiro da época acabou lançando três volumes de ensaios, e um dos assuntos mais recorrentes era o relativismo moral. "Por que a noção de certo e errado de seus ancestrais e de sua terra era a correta, e não a dos tupinambás brasileiros?" É até fácil responder: um código moral se forma com muita reflexão, memória de gerações, religião, leis e hábitos. Rousseau era um dos pecava pelo excesso contrário, criticando toda a civilização em favor do seu “bom selvagem”.
Chamamos o relativismo aplicado à história de historicismo, método que procura fazer do tempo o princípio explicativo da vida humana. A História vira Ciência no final do século XIX, quando as Ciências Humanas passam a integrar em si métodos e práticas das Ciências Naturais. Como o relativismo, o historicismo pode pecar pelo exagero, quando deixamos de enxergar continuidades, analogias, ou até uma ou outra essência que permaneça tal e qual.
Mas o que mais tenho visto é a ignorância generalizada desse princípio. Convidado a falar sobre Francisco Dias Velho, o bandeirante que nasceu na vila de São Vicente e fundou Florianópolis, o que mais vi foi artigo com moralismo anacrônico, chamando-o de racista. Às vezes até de nazista.
Talvez não saibam que discriminação por raça é um fenômeno do século XIX; e o nazismo, do século XX; que eram outros os homens de cinco séculos atrás. Dias Velho conviveu em paz com certas tribos, e em guerra com outras, foi morto por piratas ingleses, e as mulheres de sua família foram violentadas por eles. A violência dava o tom na vida de todos, nativos e europeus, sem discriminação de raça e cor.
Por isso é preciso ter um cuidado extremo ao condenar ou absolver qualquer personagem histórico. Não somos uma extensão direta dessas pessoas; deles nos separam às vezes códigos morais inteiros, fundados tempos depois e, portanto, aplicáveis com ressalvas.
Questioná-los, é possível, sim, mas trabalhoso. Exige a suspensão do juízo, uma quantidade razoável de honestidade e o cuidado para não exigir da História só um pretexto para confirmar as próprias crenças.
Rafael Nogueira é professor de História, presidente da Fundação Catarinense de Cultura e ex-presidente da Biblioteca Nacional
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