Colunista Rafael Nogueirareprodução

Nos últimos dias um livrinho sobre Edmund Burke me ajudou a preparar uma aula de métodos em História, e também a me comportar como intelectual-político. Também li um poema em prosa de Cruz e Sousa, e reli o mais famoso conto (ou novela) de Machado de Assis.
O primeiro foi escrito por João Pereira Coutinho. E se propunha a desvendar o problema dos dois Burkes, um naturalista e, outro, utilitarista. A ideia era explicar o paradoxo de uma personalidade aparentemente dividida — Edmund Burke por vezes parece um teórico da natureza humana e do direito natural; noutras vezes, um político prático, sem muita teoria geral para orientá-lo enquanto parlamentar. Mas para Coutinho nenhuma das duas respostas é suficientemente correta. Ou melhor, as duas o são, em alguma medida.

O ensaio parte de uma ampla bibliografia burkeana, e encontra nela uma teoria de fundo, com uma flexibilidade que a permite adaptar-se às exigências do momento. O parlamentar irlandês entendia que há duas naturezas humanas; uma geral, outra circunstancial. Aquela é a universalidade que nos faz humanos a todos; esta, a situação de cada homem, e de cada povo, diante de seu tempo, espaço, cultura e demais aspectos sociais que se impõem sobre as gerações.

Diante das revoluções norte-americana e francesa, os conflitos irlandeses e as questões coloniais indianas, Burke usa um instrumental comum e acaba chegando a interpretações aparentemente contraditórias, cujo maior exemplo é sua aprovação da revolução norte-americana e sua aversão à francesa.

A virtude da consistência, título do livro, é justamente o ponto de equilíbrio no qual ele se apoiava, e que o mantinha equidistante de extremismos e radicalismos, de modo que podia emitir, sobre cada caso, juízos mais livres, justos e precisos. Sua teoria das duas naturezas fez dele um exemplo de estudioso que consegue agir no mundo como político, guiando-se menos pelos compromissos ideológicos e interessados do que pela reflexão de natureza intelectual.

Já no livro “Evocações” , de Cruz e Sousa, encontrei no poema “Asco e Dor”, surpreso, um profundo mal-estar com o Carnaval. Nas palavras do maior poeta catarinense: “Por uma rua estreita, sombria e lôbrega (...) vem desfilando, aos pinchos, saracoteando toda, desconjuntando-se toda, uma turba miserável de carnavalescos, impondo aos últimos raios tristes do sol as suas carantonhas mais horrivelmente tristes ainda, as suas vestimentas funambulescas, fazendo lembrar diferentes aspectos de loucura, grãos de imbecil demência, angulosidades de crime, estados primitivos de ignorância amassados numa embriaguez mórbida, selvagem e sinistra.”

Reler “O Alienista”, por sua vez, me fez pensar nesses celerados que querem isolar, prender e matar qualquer um que não tenha as mesmas predileções que eles. Ou que pelo menos não as admire com veneração idólatra. Fico pensando se perceberão um dia que são eles os genuínos antidemocráticos, que não ouvem nem aceitam o diferente, negam as verdades dos fatos e violentam inocentes. Acho que não terão a sensatez de Simão Bacamarte de deixar os outros em paz enquanto aplicam a si os seus próprios remédios. 
Rafael Nogueira é professor de História e Filosofia, ex-secretário nacional de Cultura e ex-presidente da Biblioteca Nacional