Colunista Rafael Nogueirareprodução

Para voltar a me sentir em casa neste mundo cão lembro-me das minhas origens. Com as pesquisas de história familiar e genealogia, a identidade se expande para além da memória infantil, ultrapassando os avós e chegando, no meu caso, aos católicos e aos portugueses, depois aos brasileiros em geral, então aos ibéricos e seus ascendentes culturais, aos habitantes deste continente, até sentir-me de novo parte da humanidade.
Parece uma experiência mística - e não sei se é, a razão, por sua vez, tenta me convencer de que entendi o processo: a partir das lembranças de infância se constroem e reconstroem as afeições culturais e coletivas que a juventude desenvolve. Com o tempo, a meditação muda um pouco. Os anos vão passando, e com eles vêm novas vivências que, transformadas em memórias, se somam às anteriores. Mas, o constante retorno às recordações originárias acaba também fixando, pelo hábito, um espaço mental que serve de morada ao espírito. E é por obra dele que, onde quer que a gente esteja, pode se sentir em casa; alegre ou infeliz, digno ou injustiçado, livre ou perseguido.
Tenho para mim que Fernando Pessoa, via Bernardo Soares, fez exercício semelhante quando escreveu que sua pátria é a Língua Portuguesa. E também Hannah Arendt, quando disse que, embora judia e americana, pertencia à tradição da filosofia alemã.
Menciono Arendt não por acaso: formado filósofo aos 20 anos, tive como primeira grande mestra de filosofia uma alemã, heideggeriana. Professora Gmeiner. Com ela aprendi alguns segredos do "supremo mestre do pensamento", porém a ele sempre preferi Leibniz, Husserl, Jaspers e Arendt.
Ensinam eles que, exceto em situações-limite, é natural encontrarmos em nosso lugar no mundo, não um terreno, mas um espaço entre os homens, uma porção do mundo comum onde se dá a convivência amistosa, social, profissional, cultural e política. As últimas semanas passei lendo Karl Jaspers, para um curso que viria a gravar.
Em "A questão da culpa — a Alemanha e o nazismo", ele busca reencontrar o seu lugar no mundo, o seu e o de seu povo, quando a Alemanha esteve sob domínio dos Aliados, humilhada por si e pelos outros. Restava ao filósofo a tarefa de definir a culpa, para assim ajudar o processo de punição e purificação espiritual por que os alemães tinham de passar. Ele fala em quatro culpas: a criminal; a política; a moral; e a metafísica. Prometo voltar a eles num próximo artigo, mas desta vez queria só trazer alguns trechos que iluminassem o nosso assunto.
Diz Jaspers que “a forma de pensamento pela qual se observa, caracteriza e julga as pessoas em coletivos é incrivelmente difundida" e que "essa forma de pensar foi usada pelos nazistas da forma mais maléfica possível, martelando na cabeça das pessoas por meio da propaganda". Escreveu também que “isso é agravado pelo fato de que tantas pessoas buscam apenas palavras de ordem e obediência. Elas não perguntam, elas não respondem, a não ser pela repetição de fórmulas batidas”.
E conclui: “A Alemanha só poderá voltar a si se nós alemães nos encontrarmos na comunicação.” Será que precisaremos passar pelo terror para reencontrarmos um chão político em comum?
Rafael Nogueira é professor de História e Filosofia, ex-secretário nacional de Cultura e ex-presidente da Biblioteca Nacional