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Rafael Nogueira: Sobre letras e armas
Não creio que todo escritor deva lutar, nem o inverso. Mas esse híbrido existe e funciona
Dizem que livros e armas são como água e óleo – ou nos identificamos com um, ou com outro. Mas parte considerável de nossa tradição literária defende o contrário: as letras e as armas formam uma dupla harmônica e funcional. Cantar e poetar sobre feitos de guerra têm sido uma grande motivação para escritores criarem suas obras em todas as culturas do mundo, mas a relação a que me refiro é menos tímida. Ela não se limita ao proveito que o guerreiro tira do poeta quando canta sobre seu heroísmo; o que busco é aquilo que o poeta e o guerreiro compartilham.
Castro Alves escreveu um poema inteiro defendendo que os idealizadores do Real Gabinete Português de Leitura – biblioteca espetacular, cartão-postal da cultura carioca – fariam bem se dessem um benefício às famílias dos soldados mortos na Guerra do Paraguai, defendendo que a associação tinha tudo a ver com o esforço bélico. Um dos versos diz assim: “Nem cora o livro de ombrear co'o sabre... Nem cora o sabre de chamá-lo irmão.”
A Ilíada, a Eneida e o Bhaghavad Gitã prova que antes do poeta baiano letras e armas tiveram boa relação, mas insisto na existência do tipo híbrido, do poeta-soldado: Camões não perdeu um olho escrevendo versos. Em muitos deles consignou a harmonia entre pena e espada, a exemplo deste excerto do Canto X de Os Lusíadas: “Pera servir-vos, braço às armas feito, Pera cantar-vos, mente às Musas dada”.
José Bonifácio de Andrada e Silva contou seus feitos de guerra em um de seus discursos anuais, que fazia como secretário da Real Academia de Ciências de Lisboa. Ao contrário da corte portuguesa, Bonifácio ficou e lutou contra Napoleão. Ele disse: “Em tais circunstâncias mostrei que o estudo das letras não desponta as armas, nem embotou em mim aquela valentia que sempre circulara em nossas veias, quer nascêssemos aquém ou além do Atlântico.”
Acredito que o mal-estar com as armas decorra dos horrores das guerras e dos totalitarismos do século XX, que a todo custo queremos evitar que se repitam. O direitista cuja única habilidade é fazer arminha com as mãos acorda esses medos, em vez de submetê-los à razão. O manejo sério de uma arma pode ajudar a conscientizar sobre seus riscos, aumentando a segurança. Cidades pequenas que têm clubes de tiro ativos, como Pomerode são extremamente seguras, com níveis baixíssimos de violência. Um tempo atrás os níveis de suicídio eram altos, mas quase todos se davam por enforcamento.
Certa vez, Hélio Gracie defendeu o jiu jitsu da acusação de que a arte promove violência. Para ele, a pessoa fraca e insegura é muito mais perigosa, para si e para os outros, porque quando em perigo se apavora, não mede o dano que pode causar, nem calcula o que pode suportar. Em geral, dizia, machucam-se seriamente os novatos. Se a faixa preta equivale a um porte de arma, a analogia nos ensina algo importante.
Não creio que todo escritor deva lutar, nem o inverso. Mas esse híbrido existe e funciona. Encarar a morte é hábito comum ao militar e ao estudioso – um pode morrer em uma batalha; outro, gasta a vida na solidão improdutiva a ler e a escrever. Sofrer por amor é típico daquele que larga cônjuge, filhos e amigos para pelejar, sem saber se vai voltar. E também àquele que tudo pretere à solidão exigente dos livros, das ciências e das artes.
Rafael Nogueira é professor de História, presidente da Fundação Catarinense de Cultura e ex-presidente da Biblioteca Nacional
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