Rafael Nogueira Divulgação

Há uma pergunta que ninguém mais ousa fazer, talvez para não encarar a resposta: a política é um exercício de idealismo ou apenas um assalto que deu certo?
Entre leituras do doutorado e do meu curso de clássicos da política, voltei a um duelo filosófico digno de crônica de jornal: Sócrates contra Trasímaco, no Livro I de A República, de Platão. A cena? Uma Atenas cheia de poeira e prepotência. De um lado,Sócrates, aquele cara chato, capaz de levar qualquer um à loucura com perguntas inconvenientes. Do outro, Trasímaco, impaciente, prático, sem tempo para poesia política. Sua tese? Justiça é aquilo que os fortes chamam de justiça. Quem manda, dita as regras. O resto é distração para o gado.
Chocado? Pois sente-se.
Charles Tilly, um dos grandes cientistas políticos do século XX, estudou a formação dos Estados modernos e chegou a uma conclusão incômoda: governos não nasceram de nobres contratos sociais, mas sim de um esquema de proteção mafiosa. Thomas Hobbes já havia sugerido algo parecido: sem uma autoridade central forte, a humanidade estaria condenada a um estado de guerra de todos contra todos, um grande Mad Max sem jaquetas de couro. Rómulo e Remo fundaram Roma assim, tomando território, distribuindo alianças e eliminando adversários. A política, desde suas origens, foi a arte de converter o poder nu em ordem estabelecida. O crime organizado, com seu jeitão pragmático, deu origem ao Estado. Trasímaco sorri, satisfeito.
Adam Przeworski, outro cientista político de peso, analisou as democracias e concluiu que elas só sobrevivem porque ninguém tem certeza de que estará no poder para sempre. Não há princípio moral: há medo. Cálculo de risco. A ideia de que a política é a busca pelo bem comum começa a soar como aqueles discursos que até quem faz não acredita.
E o sistema de partidos, a imprensa, os lobbies?
Schattschneider, em The Semi-Sovereign People, mostrou que a democracia não é o governo do povo, mas sim um teatro onde as elites escolhem quais temas entram na pauta pública. Controlar a pauta é controlar o jogo. Qualquer semelhança com o que Trasímaco dizia não é coincidência.
Sócrates tenta rebater. Se a justiça fosse apenas conveniência dos mais fortes, como explicar aos governantes que aprovam leis contra seus próprios interesses? E mais: um bom governante deve buscar o bem da comunidade, não apenas o próprio.
Ah, claro. Como se não tivéssemos visto inúmeros líderes justificando suas medidas mais egoístas como sacrifício pelo povo.
Mas alguns personagens surpreendem. Por exemplo, quando George Washington recusou um terceiro mandato para evitar a concentração de poder, ou quando Dom Pedro II abdicou do trono sem resistência, pensando na estabilidade do Brasil em vez de seus próprios interesses.
Leo Strauss, um dos mais sagazes leitores de Platão, sugere que Sócrates nunca venceu esse debate. Ele desmontou algumas falhas no raciocínio de Trasímaco, mas não provou que a justiça não é um instrumento do poder. E se for?
Os cientistas políticos, quando são verdadeiramente cientistas, não importa no que creem. Ou acertam ou erram. E quando a esquerda bebe na fonte da ciência, e a direita também, há convergência.
Aristóteles dizia que a política deveria visar ao bem comum. São Tomás de Aquino queria uma ordem justa, sustentada pela virtude do governante e do governado. Mas a realidade segue dura. A política segue sendo poder, cálculo e interesses. Seja no Estado como organização criminosa de Tilly, na democracia como equilíbrio instável de Przeworski, ou no jogo das elites de Schattschneider, Trasímaco continua rindo.
Eu gosto de ter esperança. Porque, apesar de tudo, há momentos em que sacrifícios acontecem, interesses cedem espaço à virtude, e a política, ainda que por um instante, se torna mais do que um jogo de força. Talvez sejam exceções, talvez ilusões. Mas são essas pequenas fagulhas que impedem que o Trasímaco vença para sempre.
Sócrates não refutou Trasímaco completamente, mas seguiu adiante e nos deu uma grande lição: a moralização da política começa quando nos recusamos a aceitar a política apenas como um jogo de força. Por isso gosto tanto de Hannah Arendt, que insistia, sozinha, que a política acaba onde começa a força.
Talvez não seja possível provar que a justiça não é a conveniência dos mais fortes. Mas, se não for, ao menos podemos fingir bem o bastante para que Trasímaco não ria tão alto.