Rafael Nogueira Divulgação

Dia da Constituição, e o Supremo Tribunal Federal caprichou: vestiu-se todo de verde e amarelo, acendeu luzes e estendeu tapetes. Bonito, patriótico até. Mas estranho. Estranho porque, ano passado, quando a Constituição de 1824 fez duzentos anos, não se ouviu um mísero rojão vindo daqueles lados. Por que tanto zelo agora? Ora, meu caro Watson, porque desta vez havia uma bela vingança com lugar, data e hora marcados na agenda.
Os ministros do STF demonstram uma relação peculiar com a História do Brasil. Carmen Lúcia repete, convicta e enfática, que a Constituição Imperial foi "outorgada" por Dom Pedro I, como quem fala de um papel imposto sem que se perguntasse nada a ninguém, nem antes, nem depois. O imperador, no entanto, pediu a conselheiros instruídos e competentes, ex-deputados constituintes, que redigissem um texto que depois seria submetido às câmaras municipais. Resultado: o documento foi aprovado pela esmagadora maioria, que recomendou colocá-lo logo em vigor, tal era sua qualidade. De "outorga" unilateral, portanto, apenas o clichê fácil que agrada preguiçosos.
Já de Moraes é um capítulo à parte. Após um vexame histórico recente — afirmou que o Brasil deixou de ser colônia em 1822, esquecendo que, desde 1815, éramos Reino Unido a Portugal e Algarves — decidiu sabiamente fugir das datas e optou por frases de impacto, suficientemente vagas para que ninguém percebesse mais algum escorregão. Sua estratégia: "O Brasil é independente e soberano, ponto". Parece frase de para-choque de caminhão, mas é o bastante para garantir nota 10 em erudição pela USP. Fica a dica aos estudantes em tempos difíceis.
Por trás da súbita paixão pela Constituição mora um casuísmo medonho. "Julgamento" virou vingança, represália, retaliação, ou seja lá qual sinônimo preferirem. Vejamos: Filipe Martins será julgado exatamente no aniversário de Olavo de Carvalho, seu mestre; o PL multado em 22 milhões, número coincidente com a legenda partidária; e Bolsonaro começa a enfrentar a toga justamente em 25 de março, logo ele, que tanto falou nas "quatro linhas da Constituição". É numerologia judicial, quase macumba, com direito a martelo no lugar de atabaque.
Mais curioso ainda foi o Supremo mudando regras internas como quem troca de camisa. Primeiro, deslocaram ações penais do Plenário para as Turmas. Às vésperas do julgamento de Bolsonaro, mudaram o entendimento sobre foro privilegiado para ampliar seletivamente suas competências. Bolsonaro definiu bem: um "self-service institucional". Escolhem o que convém no momento e descartam a regra que garantiria um julgamento minimamente decente.
Os advogados que se aventuraram na defesa tiveram de enfrentar de tudo: ausência absoluta de provas, relatórios policiais desmentidos, direitos violados e até mesmo impedimento físico de acesso ao tribunal. Um advogado relatou ter sido barrado na entrada, celular confiscado e acusado de desacato. Outro provou com testemunhas que seu cliente estava em outro lugar no momento da suposta reunião golpista. Os ministros? Bem, eles continuavam com seu pomposo colóquio, alheios às explicações jurídicas, mais preocupados com o tom das gravatas dos defensores.
Em resumo, o tribunal parece ter virado oficina de reforço de narrativas. Ninguém precisa gostar dos acusados para perceber o perigo. Quando ministros ajustam regras, precedentes e até palavras conforme o denunciado da vez, quem perde é a Justiça. Fica só o teatro barato, grotesco, e um país assistindo, incrédulo, à queda livre das instituições.
O Brasil merecia juízes que estudassem mais a história do próprio país, por dever de ofício, pois quem ama, conhece. Merecia ministros que zelassem pelo significado das palavras, pela coerência jurídica e pelo respeito aos direitos mais básicos, tanto de acusados quanto de advogados. Enquanto isso não acontece, a Constituição de 1824, que eles acreditam homenagear, e a de 1988, tão mutilada, que juram proteger, talvez prefiram virar-lhes as costas, envergonhadas do espetáculo realizado em seu nome.