Rafael Nogueira Divulgação

Uma mulher com batom. Um pipoqueiro. Um sorveteiro. Eis os novos inimigos da ordem democrática, segundo os critérios de nossa corte mais alta. Todos perigosíssimos. Vigiem. Filmagem em tempo real. Multa. Prisão. Estado de alerta.
É o que temos.
A democracia virou esse bicho estranho que só aceita carinho de um lado. Do outro, morde. Se alguém grita, é ameaça. Se a rua enche, é golpe. Se o povo não abaixa a cabeça, é crime organizado. E se alguém aparece com um discurso — desses que não passam no teste do “bom mocismo” do Supremo —, lá vem o rojão: prisão domiciliar, multa de vinte mil, carimbo na testa — antidemocrático.
Foi Robert Dahl quem nos deu o termo “poliarquia” — e com ele uma descrição mais honesta da democracia. Tal como pode ser, a democracia exige duas forças vitais: de um lado, participação e abertura; de outro, contestação e competição. Tudo o mais — progresso, transparência, igualdade, educação — são adornos. Flores de mesa. Devem ser buscadas, sim, mas por quem joga. Não por quem apita o jogo.
É por isso que urge dizer: o que sustenta uma democracia não é a pureza de seus ideais, mas o equilíbrio precário entre forças que se enfrentam sob regras que ninguém pode dobrar sozinho. O que a destrói não é o embate, mas a censura. O que a mata não é a mobilização popular, mas o medo de sair à rua. O que a transforma numa farsa é a certeza iluminada de que tudo pode — e deve — ser transformado à força.
Nestes dias, vimos tudo isso.
De um lado, o Supremo aplicando multa de vinte mil reais a Filipe Martins por uma publicação feita por seu advogado — e nada mais. O cara nem falou nada. Foi o advogado que postou. Mesmo assim, pau nele. Pau no advogado. Pau até na liberdade de advogar.
De outro, multidões na Paulista. Aí vêm eles, os perigosos. Os que ainda enchem as ruas. Governadores, prefeitos, senadores, vereadores. Todos somando-se a um povo que, mesmo ameaçado por penas grotescas, não se dobra. Um povo que ainda bate palmas. Que ainda reza o Pai-Nosso em praça pública. Que come pipoca, passa batom e toma sorvete. Subversivos.
Quando o cálculo do poder ignora o risco da repressão — e esquece que repressão também fabrica mártires —, então não temos mais uma democracia em autodefesa. Temos uma oligarquia em pânico. E não se trata aqui de defender um nome, uma sigla, uma ideologia. Trata-se de defender o direito de existir enquanto oposição.
Quando o PSDB (RIP) repetia com as esquerdas que Bolsonaro era tal e qual o bigodinho alemão, não percebia que estava atiçando o lunático mais voluntarioso a fazer justiça pelas próprias mãos. Retórica inflamada gera consequências inflamáveis. Quando o Judiciário convoca uma guerra contra a direita em nome da “defesa da democracia”, amplia perigosamente o escopo do ataque — e justifica, com toga e verniz, repressão, censura, multa, prisão e até sentença de morte. Prender um idoso por quase duas décadas é o quê, senão uma pena capital disfarçada?
A reação vem, senhores: multidões mais destemidas, agentes internacionais mais atentos, e os olhos do mundo mais fulminantes. O conflito escapa. O jogo vira briga.
Talvez seja hora do Supremo reconhecer uma verdade simples — e, por isso mesmo, insuportável: a oposição não vai desaparecer. Nem com censura, nem com prisão, nem com multas arbitrárias, nem com a criminalização da advocacia.
Vem aí 2026. E, aconteça o que acontecer na disputa presidencial, a nova composição do Congresso será, no mínimo, um bom contrapeso.
Quem garante a democracia são todos os seus atores juntos. Não o Supremo, que dela deriva. Não a Constituição, que é sua consequência, não sua causa. Muito menos um poder moderador clandestino, sem nome nem rosto, que institui estados de exceção sob o pretexto de proteger uma legalidade que ele próprio desrespeita.
Se não recuarem agora — se não interromperem essa cruzada contra a direita —, o país não cairá por culpa dos que protestam, mas por culpa dos que se recusam a ouvi-los. O preço da surdez é o colapso. E quando um regime cai, não nasce outro. Vem o caos.
E ninguém, por mais togado que esteja, escapa à História.
É melhor parar por aqui. Antes que alguém diga que este texto é perigoso. Ou que você, leitor, por tê-lo lido até o fim, compactua com a desordem.
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