Rafael Nogueira Divulgação

Todo mundo acredita que o Brasil é uma democracia. O que é natural: a gente cresce ouvindo isso, vê na televisão, repete na escola. E, convenhamos, é um jeito simpático de fingir que está tudo bem. Mas, se a gente olhar com atenção, o Brasil talvez seja outra coisa. Algo entre a ordem e a zona, entre o voto e a tutela, entre o palanque e o camburão.
Durante décadas, a ciência política foi prisioneira de uma promessa que nunca se cumpriu. Após a queda do Muro de Berlim, floresceu uma fé quase teológica na “transição democrática”, como se a liberdade fosse o destino natural das nações que se livram da tirania. Bastava tirar o déspota, realizar eleições, celebrar o milagre: a democracia brotaria, espontânea e duradoura. Hoje, com a ressaca dos otimistas, é hora de revisitar autores que alertaram para os limites dessa narrativa, a partir do caso que mais nos interessa: o brasileiro.
Juan Linz, inspirado em Weber, gostava de classificar regimes com elegância. Descreveu os não democráticos como formas distintas de dominação: totalitários, autoritários e pós-totalitários. Se visse o Brasil, talvez soltasse um suspiro: “não é bem uma democracia… mas também não é Cuba.” Linz não acreditava em transição mágica. Sabia que, entre regimes, há sempre entulho institucional, névoa de interesses, e um batalhão de bacharéis disfarçados de democratas. E nos lembraria que há núcleos autoritários em contextos formalmente democráticos — desde que haja verniz legal. E aqui, verniz é o que não falta.
Já o pessoal da planilha — Geddes, Wright e Frantz — resolveu estudar a transição: como ditaduras caem? Descobriram que caem como bêbado em calçada molhada: às vezes com estilo, às vezes direto no colo de outro bêbado. O Brasil deles seria aquele caso em que a ditadura saiu à francesa, deixou a chave com o porteiro, mas seguiu mandando no condomínio.
Aí entra Thomas Carothers, o mais cínico da turma e, por isso, o mais simpático. Ele olhou para o mundo, viu aquele monte de países “em transição” e pensou: “transição para onde, irmão?” Muita eleição, muito discurso bonitinho, muito workshop em hotel com café ruim — e no fim, o poder nas mesmas mãos. Ele chamou isso de zona cinzenta. Eu chamaria de Brasil mesmo.
Porque veja: temos eleições, sim senhor. Mas temos também ministro do Supremo dando pito em deputado, promotor reeducando youtuber, polícia federal com mais audiência que novela. É a democracia do capricho. Se você fala o que eles gostam, parabéns. Se não, processo, busca e apreensão, nota técnica. Tudo isso com muito latim, jurisprudência criativa, parecer técnico — que serve mais pra intimidar do que pra explicar.
De 1985 pra cá, contamos nossa história como epopeia institucional: o regime militar, aquela corte de demônios, cede lugar à nova república, palco de iluminados estadistas. Surge uma Constituição que fala como catedral, mas funciona como repartição. Dela brotam eleições, voto universal, imprensa livre, até samba no pé. Mas com Linz, Geddes e Carothers em mãos, o retrato muda — e não pouco. Fica mais borrado, mais torto, mais parecido com o Brasil que a gente vive do que com o das fundações internacionais.
Erramos a ordem das coisas. Primeiro vieram as liberdades, depois uma eleição (indireta), e só então a Constituição. Dali em diante, seguimos o roteiro da transição, mas decoramos mais os ritos do que os fundamentos. O Estado virou espetáculo e cartel. A política, show business jurídico. E a crença infantil de que basta um estetoscópio no pescoço pra ser médico.
Hoje, o risco não é o autoritarismo clássico — o das botas e do toque de recolher. O risco é o do legalismo autoritário. O domínio de corporações não eleitas que “corrigem” o povo quando ele vota “errado”. A manipulação tecnocrática da verdade, dos fatos e da memória. Como diria Carothers, é o triunfo do regime híbrido: nem ditadura, nem democracia. Algo pior — porque mais estável.
No fundo, regime político não é fantasia de Carnaval. Democracia é hábito, risco, povo enchendo o saco do poder — e sendo respeitado por isso. O resto é peça de teatro. E das ruins.
O Brasil vive numa dessas zonas em que ninguém sabe quem manda, mas todo mundo obedece. Em que se pode tudo — desde que com jurisprudência. Em que democratas mandam calar a boca, juízes dão entrevista, e eleitores viram suspeitos.
Quer saber se o Brasil é uma democracia? Pergunte a quem não pode mais falar. E talvez descubra que, entre o regime militar e o democrático, inventamos uma terceira via: uma transição eterna. Um quase. Um talvez. Um eterno “agora vai” que nunca vai. Ou, como diria minha avó: “uma vergonha.”