Livro ’Herança e Testamento’ foi lançado no Brasil em outubro de 2022Divulgação
Quando os pais de Bergljot, que já estão na casa dos 80 anos, decidem, ainda em vida, resolver as questões da herança e fazer um testamento para dividir os bens entre seus quatro filhos, Bergljot precisa reviver o trauma que lhe foi infligido e lidar com o apagamento de sua história pela família.
Logo de início, tudo que o leitor sabe é que Bergljot passou por um grande trauma aos 5 anos de idade e, há cerca de 23 anos, decidiu que seria melhor para sua saúde mental cortar qualquer tipo de relacionamento com os pais e os irmãos. Ela é apenas relativamente bem sucedida nisso, já que sua mãe e uma das irmãs ainda tentam entrar em contato com ela de tempos em tempos.
Certo dia, Bergljot recebe um email da mãe afirmando que a herança será dividida igualmente entre os quatro irmãos. Bergliot se dá por satisfeita, já que pensava que seria deserdada por conta de seu afastamento. Pouco depois, com a morte do pai, vem à tona o fato de que na verdade os pais de Bergljot passaram para o nome das duas filhas mais novas, Astrid e Asa, dois chalés muito queridos por toda a família. O irmão mais velho, Bard, e Bergljot receberiam apenas uma compensação irrisória pelos chalés e o restante da herança seria dividido igualmente entre os quatro.
Quando Bard se revolta com a injustiça da situação, Bergljot, que não queria se meter em disputas pela herança, acaba tomando partido do irmão e se vê dragada de volta aos seus traumas.
Vigdis Hjorth faz um trabalho magistral ao retratar como é difícil para a protagonista repetir inúmeras vezes o que aconteceu com ela e ser sempre silenciada ou ter sua dor diminuída, sendo considerada até mesmo egoísta por não querer retomar o convívio familiar. A narrativa não é linear, o que promove muitos saltos e retrocessos na história, que é cíclica, mostrando o tempo todo a angústia da protagonista que não tem voz.
Apesar de certamente já imaginar desde as primeiras páginas o que aconteceu com Bergljot dos 5 aos 7 anos de idade, o leitor só tem essa confirmação da metade para o final do livro. Estamos o tempo todo na mente de uma protagonista traumatizada, que vai tateando a própria história pelas beiradas, até não ser mais possível se calar e deixar de nomear e de identificar o que aconteceu.
Vigdis Hjorth confirma que o livro tem similaridades com a sua vida, mas garante que não é inspirado nela e que não se trata de uma biografia. É um romance, de acordo com a autora. Fato é que após o lançamento de “Herança e Testamento”, uma das irmãs de Vigdis lançou um livro em resposta à obra.
O livro é certeiro ao mostrar que pessoas que viveram uma mesma situação ou que conviveram em um mesmo espaço e tempo têm pontos de vistas diferentes sobre determinado acontecimento comum e que esses diferentes olhares podem ser genuínos ou ter o objetivo de esconder algo. Além disso, ele escancara o descrédito com que vítimas geralmente são tratadas ao contar sua história.
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