Ainda faltam alguns meses para a primeira escola de samba do Grupo Especial entrar na Marquês de Sapucaí, mas o Carnaval 2024 já se desenha como um dos mais diversos dos últimos anos, ao menos no quesito enredo. Com a definição da ordem dos desfiles, em sorteio realizado no último dia 20 de junho, a jornada começará com o almanaque medieval da Unidos do Porto da Pedra, primeira da noite de domingo, e terminará com o culto ao vodum serpente da Unidos do Viradouro, última a pisar na avenida, já no amanhecer da Terça-feira Gorda.
A disputa pelo título terá, ainda: delírios de um folião alagoano (Beija-Flor de Nilópolis), cosmogonia yanomami (Acadêmicos do Salgueiro), a onça no imaginário brasileiro (Acadêmicos do Grande Rio), lendas lusitanas (Unidos da Tijuca), testamento de cigana (Imperatriz Leopoldinense), um defeito de cor (Portela), a salvação do mundo pelas crianças (Unidos de Vila Isabel), Alcione (Estação Primeira de Mangueira) e João Cândido (Paraíso do Tuiuti). Enroscada numa disputa interna pela presidência, que foi parar na Justiça, a
Mocidade Independente ainda não lançou oficialmente seu enredo, mas até as telhas da velha quadra em Padre Miguel já sabem que é o caju.
A pluralidade e a profundidade dos temas estão relacionadas à crescente valorização da pesquisa de enredo na estrutura das agremiações. Um breve olhar sobre o perfil dos profissionais atesta a diversidade desse coletivo, bem diferente, por exemplo, dos carnavalescos. Dentro desse debate, duas falsas polêmicas, fruto de desconhecimento e disputa de ego, vêm reverberando nos bastidores do carnaval desde o resultado de 2023.
A primeira inconsistência seria um certo ineditismo da função, o que é um erro histórico. Nos anos 1960, a Imperatriz, atual campeã, foi pioneira ao criar um departamento cultural para pesquisar e desenvolver o enredo, legando ao visual um papel secundário. A figura central desse movimento era o médico Hiram Araújo (1929-2017), que migrou para a Portela após a experiência leopoldinense.
Tratava-se de um contraponto à “Revolução Salgueirense”, período no qual o carnavalesco Fernando Pamplona promoveu mudanças artísticas que marcariam os desfiles dali por diante. No “modelo Pamplona”, narrativa e visual convergiam, enquanto outras escolas optaram por revolucionar apenas a história a ser contada. Venceu a fórmula salgueirense, mesmo que o investimento na pesquisa significasse uma tentativa de resistir ao processo de centralização da esfera criativa nos carnavalescos – que por muito tempo assumiram um protagonismo quase solitário no desenvolvimento do espetáculo.
Mas não sem ajuda. Nas décadas de 1970 e 1980, vigorou a colaboração de pesquisadores, professores e estudiosos em geral com os carnavalescos, mas com uma conotação profissional mais frágil. Tanto que vários enredos clássicos nasceram de ideias originais cujos autores ficaram no anonimato. Em alguns casos, até havia uma certa parceria, mas precária, sem o devido reconhecimento. O velho, sensível e grave problema do crédito e da autoria no carnaval carioca ainda hoje é um assunto que merece maior reflexão por parte da crítica, da imprensa e dos próprios artistas.
Este panorama mudou sensivelmente a partir da segunda metade da década de 1990, quando os chamados enredistas ganharam mais espaço. Nos últimos 20 carnavais, 13 escolas campeãs tiveram participação ativa de pesquisadores, sozinhos ou em grupo, com o devido crédito. Ainda hoje, carnavalescos contratam profissionais para colaborar na concepção e no desenvolvimento dos seus enredos, nem sempre anunciando publicamente a participação deles. São vários os casos, inclusive de desfiles recentes e históricos (que não serão apontados para evitar desconfortos).
Em um ambiente de disputa acirrada, é natural que o reconhecimento e a visibilidade dos pesquisadores gerem incômodos. Só que isso não faz sentido algum, pois escola de samba é, em sua gênese, um fazer coletivo. Assumir a responsabilidade compartilhada pela produção de um espetáculo artístico dessa magnitude e complexidade é (deveria ser) um ato de grandeza e humildade, visto que não reduz a importância de nenhum profissional. O maior gênio de que se tem notícia no carnaval carioca não sabia desenhar. O exemplo de Joãosinho Trinta serve para lembrar que esta festa é feita por múltiplos talentos e saberes. E que na avenida – e nos barracões – há espaço suficiente para todos e todas.
* Mauro Cordeiro é antropólogo. Foi o pesquisador do enredo da Beija-Flor de Nilópolis de 2023