opina14julARTE KIKO

A doutrina da proteção integral foi o fundamento teórico e político que encarnou o entendimento de que criança e adolescente são sujeitos de direitos, dotados de plena condição cidadã e como tais devem receber da família, da sociedade e do poder público, prioritariamente, cuidado, atenção e proteção para o seu pleno e peculiar processo de crescimento humano e social.
Mas foi no processo de redemocratização do Estado brasileiro, instaurado em 1985 e institucionalizado com a nossa Carta Política constitucional de 1988 que estabeleceu este compromisso através do Artigo 227.
E é esta norma que está completando trinta e três anos no dia 13 de julho de 2023!
Ao mencionar que “é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente” os direitos humanos infanto-juvenis temos não somente a ruptura do marco doutrinário da situação irregular que instituía o controle social e punitivo da pobreza através da judicialização da tutela contra os outrora chamados de menores pela lógica do labelling approach, mas a inserção legal de dois novos atores que assumem a obrigação de atuar pela proteção integral da criança e do adolescente.
Parte da literatura especializada acredita que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), lei 8069/90, não desenvolveu com ênfase política, modelos e formas de participação da sociedade na atuação da proteção integral infanto-juvenil, para além do princípio difuso de que devemos estar todos e todas atentos para proteção e cuidados cotidianos.
Como uma exceção à regra, testemunhamos ao longo dos trinta e três anos do Estatuto da Criança e do Adolescente dois modelos experimentados de participação da sociedade na proteção da criança e do adolescente, sendo eles os Conselhos de Direitos (municipais, estaduais e nacional) e o Conselho Tutelar na cidade
Numa síntese abreviada de análise de conjuntura destas três décadas, evidenciou-se uma ideia de “ocupação popular” em detrimento da esperada “participação social”, rebaixando muitas vezes o Conselho a ser um espaço dos projetos institucionais em detrimento de um projeto político amplo organizado para o enfrentamento do desafio da proteção integral de crianças e adolescentes.
O Conselho de Direitos é imprescindível para sociedade e é imperativo refazer o caminho para buscar formas contínuas de integração da sociedade, dialogando diretamente com os cidadãos para além das representações institucionais.
O Conselho Tutelar surge como a maior resposta da sociedade brasileira no processo de redemocratização do Estado brasileiro, na órbita dos direitos das crianças e adolescentes.
Trata-se da desjudicialização, o afastamento primário do Poder Judiciário para dar lugar a um órgão público que investe de autoridade formal lideranças comunitárias da sociedade comprometidas com a proteção integral e efetiva da criança e do adolescente.
Ocorre que, ao longo dos anos verificamos uma contaminação desnaturalizadora deste processo político com várias formas de desmonte deste da participação da sociedade na escolha de seus representantes.
O poder público, numa estratégia burocrática e tecnicamente meritocrática, fez do processo de escolha dos conselheiros tutelares um fardo legal sem dar o contorno de que se trata de um legado da democracia e que precisa ser cuidado como tal.
Soma-se a isso, a ingerência de vários modelos de abuso de poder no processo político de escolha dos conselheiros tutelares, visando aparelhar o espaço do conselho para fins estranhos a proteção integral de crianças e adolescentes.
Mais recentemente, temos identificado uma nova modalidade de abuso de poder, para além da clássica e conhecida eleitoral, o abuso de poder religioso.
Trata-se de uma ingerência indevida com investimentos financeiros por parte de denominações religiosas com a perspectiva de eleger conselheiros tutelares para estender para o espaço do Conselho Tutelar suas agendas de valores, intervindo assim nas medidas de proteção na comunidade.
Este cenário, altamente temerário, coloca em risco o projeto político do conselho tutelar como uma expressão livre da comunidade e impõe uma intervenção imediata dos órgãos competentes, inclusive o Ministério Público, visando uma correção de rumos.
Somando-se o estabelecido na Lei Federal nº 13.824, na Resolução nº 231 do CONANDA com a recente aprovação de apoio dos Tribunais Regionais Federais (TER) se desenvolve os parâmetros normativos do processo unificado e nacional de escolha dos conselheiros (as) tutelares.
Contudo, é necessário convocar os movimentos sociais para que esta pauta vá além de suas fronteiras, visando uma ampla mobilização da sociedade, colocando fora de risco o mais importante projeto político da democracia brasileira para nossas crianças e adolescentes.
E quando o Estatuto da Criança e do Adolescente completa seus 33 anos em 2023, é tempo de renovação do compromisso da família, da sociedade civil e do poder público com a democracia, tão desafiada ultimamente, mas resistente aos arroubos autoritários.

* Carlos Nicodemos é advogado e membro da Comissão de Direitos Humanos do Conselho Federal da OAB