Achei por bem dizer, não para afastar a alegria, mas para enterrar com o falecido o tempo, também morto, de nossas vidas.
Quando Henrique apagou minha alma, naquele dia quente de um interior quente de histórias fadadas aos reinícios, parti para não me partir ainda mais. A dor da rejeição é dor de difícil reparação. Era minha prima que ele queria. Não, não era minha prima que ele queria. Era minha prima, também. Algumas semanas depois, nos reencontramos e eu não disse “não”. Fiquei algum tempo prosseguindo com o corpo que já sabia não ser meu. Um "não" demora a ser pronunciado dentro da gente.
Ele não queria que minha prima soubesse. Nem eu. Eu não queria que houvesse minha prima. Eu não compreendia que outra história poderia nascer, que era preciso, apenas, que eu fechasse e abrisse a porta. Foi, então, que definitivamente mudei. Fui estudar na cidade grande, mesmo sentindo que grande parte de mim demoraria a se mudar. Ele foi comigo. No pensamento e em algumas visitas, antes do "não" definitivo ser pronunciado.
Quando finalmente ele terminou com minha prima, eu já não mais queria prosseguir. Minha alma já estava nos livros, na aspiração de devolver justiça a vidas sofridas pelas ambições humanas. Não fosse querer mais do que se tem direito, muitas guerras seriam evitadas.
O tempo apagou, vagarosamente, a dor. Vez em quando, eu acordava atordoada de lembranças do seu corpo. E justificava o injustificável. Dizia a mim mesma das suas carências. Um viciado em sedução. Eu sabia que ele nunca seria meu. Talvez porque iniciou errado. O sexo nasceu antes dos afetos. A mãe de Henrique nunca foi de Henrique. Eu sabia o que seu padrasto havia feito com ele, desde cedo. Eu sabia do fingir não saber da sua mãe. Ele dizia com alguma lamentação, nos poucos momentos de sinceridade que nos costuravam, depois das rasgaduras que suas idas e vindas provocavam em mim.
Os estudos e a decisão de ser juíza ampliaram os meus territórios do existir. E, quando eu consegui dizer "não", foi como uma mudança de estação da minha alma. Uma primavera apresentando florescimentos. E dias novos trouxeram dias novos e demitiram dias passados. Ou melhor, guardaram nas prateleiras da memória o que apenas na memória deve permanecer.
A vida com Miguel demorou a oferecer prazer. Ele não tinha a destreza de Henrique no desbravamento do corpo de uma mulher. Era rápido onde deveria ser vagaroso e vagaroso onde deveria ser rápido, para aprender que precisamos de um pouco mais. Henrique sabia dos tempos, conhecia a geografia do meu corpo e não descansava, enquanto não me sabia plena de prazer. O problema era o depois. Era saber da outra, das outras. Não, acho que estou exagerando. Não gosto de pensar em Miguel como inferior a ele no tema do amor. Até porque o amor não é apenas cama. E, com o tempo, nos ajeitamos. E, com o tempo, nos descobrimos. E nunca mais tive outro homem a não ser em alguns dias loucos em que a memória de Henrique voltava. Apenas a memória, eu juro.
Nunca mais nos falamos. Até o dia em que minha prima ligou para falar da morte e do sepultamento. Até sua visita que parece interminável.
"Prima, no que você está pensando? Por que esse silêncio todo?"
Melhor não dizer. O que muda se ela souber? Se eu disser, é apenas para dizer que eu não fui trocada. O que nossas histórias ganham com isso? Há segredos que merecem prosseguir, principalmente quando fazem o passado mudar o presente, acrescentando dor em vidas já doídas.
Eu sorri dizendo do cansaço e de algumas decisões que falavam dentro de mim e inventei conversa. Minha prima voltou a falar do interior, de Henrique e de outras vidas que ficaram de onde já saí. Da janela do apartamento em que moro, é possível contemplar o pôr do sol que estava especialmente deslumbrante naquele dia. Convidei minha prima para que nos levantássemos para ver o despedir do dia. E, logo depois, nos despedimos.
Entrei para tomar banho e sentir a água limpando até os pensamentos. Não, os pensamentos podem permanecer, já não mais doem. E daqui a pouco chega Miguel. Que bom que temos um ao outro.
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