João Batista Damasceno, desembargador do TJdivulgação

Iniciou-se, no STF, a votação da ação que pretende descriminalizar o aborto, em outras situações que não as já autorizadas por lei. A presidenta do STF, ministra Rosa Weber, votou ontem, sexta-feira (22), a favor da descriminalização do aborto para as mulheres que interromperem a gravidez até a 12ª semana de gestação. A votação estava ocorrendo pelo plenário virtual, ou seja, pela internet. O ministro Luís Roberto Barroso propôs que o caso seja julgado no plenário presencial e isto deverá ocorrer futuramente.
Em voto muito fundamentado, a ministra Rosa Weber analisou estudos que mostram que a criminalização não é a melhor política para resolver os problemas que envolvem o aborto, e disse que a justiça social reprodutiva, "fundada nos pilares de políticas públicas de saúde preventivas na gravidez indesejada, revela-se como desenho institucional mais eficaz na proteção do feto e da vida da mulher".
A ministra ainda pontuou que "a criminalização perpetua o quadro de discriminação com base no gênero, porque ninguém supõe, ainda que em última lente, que o homem de alguma forma seja reprovado pela sua conduta de liberdade sexual, afinal a questão reprodutiva não lhe pertence de forma direta".
A ministra cita pesquisas indicando que as mulheres negras e de classe social mais baixa são as maiores afetadas pelos abortos ilegais e disse: "Ainda, cumpre assinalar que abortos inseguros e o risco aumentado da taxa de mortalidade revelam o impacto desproporcional da regra da criminalização da interrupção voluntária da gravidez não apenas em razão do sexo, do gênero, mas igualmente, e com mais densidade, nas razões de raça e condições socioeconômicas". As mulheres que têm dinheiro se internam em clínicas e hospitais de luxo, realizam o procedimento com seus médicos particulares e o sistema de justiça jamais toma ciência do que fazem. A criminalização do aborto é a criminalização da mulher pobre.
A questão do aborto suscita paixões e impede um debate racional e equilibrado. Nos Estados Unidos, já ocorreram assassinatos de médicos e mulheres por radicais que dizem defender a vida. Somente a partir do século XIX, a Igreja começou a defender a "animação imediata", ou seja, que uma alma entra no feto no momento da fecundação. Antes, se acreditava que fosse em outros momentos. A ciência não comprova esta ocorrência em momento algum.
O Direito Brasileiro autoriza o aborto em duas situações: estupro e risco de vida para a gestante. O estupro é presumido quando a vítima não tem condições de consentir com o ato sexual, seja criança ou doente psiquiátrica.
Num caso recente, que se tornou midiático, debatia-se sobre a necessidade de interrupção de gravidez de risco, decorrente de estupro, o que deveria ser decidido exclusivamente por quem tinha interesse. Mas a intolerância de um religioso chocou os que o assistiram na mídia, pois usando seu poder sacerdotal, tomou a iniciativa de dizer excomungados os médicos e as vítimas, por considerar o aborto mais grave que o estupro. Não se trata de preocupação com a vida. Não se tem notícia de sanção religiosa para homicidas, apesar de no Brasil ocorrerem 50.000 homicídios por ano. Executores de crimes contra a vida e contra a qualidade de vida de crianças relegadas à miséria, ao abandono e à mendicância não são punidos pelos religiosos. A política de extermínio mata jovens negros e pobres nas periferias e não causa comoção. Durante a pandemia, foi instituída política genocida para eliminar idosos e pessoas com comorbidades para aliviar o orçamento da previdência e do SUS e não houve excomunhões.
O que se faz é misoginia, para fazer mulheres reféns da culpa e lhes tirar o poder de escolha. Misoginia é comportamento avesso às mulheres e às questões que lhe dizem respeito. Esta questão restou ressaltada no voto da ministra, que apontou que criminalização do aborto foi determinada numa época em que as mulheres eram excluídas de definirem suas próprias vidas, quando a maternidade e os cuidados domésticos compunham o único projeto de vida permitido às mulheres, sendo qualquer escolha fora desse padrão inaceitável e o estigma social, certeiro. A ministra ainda ressaltou em seu voto que as mulheres foram silenciadas e não conseguiram participar da definição de algo que dizia respeito ao direito das próprias mulheres, que é o sistema reprodutivo. O Código Penal, de 1940, foi escrito por homens e as leis foram aplicadas por homens. Somente no governo Jango, em 1962, foram as mulheres equiparadas aos homens em direito, quando editado o Estatuto da Mulher Casada. Este foi um dos argumentos utilizados pelos conservadores para reforçar o golpe naquele presidente. A pauta dos costumes sempre foi manuseada para empolgar a massa e sufocar as liberdades.
No presente momento, voltam os discurseiros de costumes a falar em liberação de aborto. Não é esta a questão. Desconheço quem defenda o aborto indiscriminadamente, como quem faça cirurgias por prazer. Aborto dói, sangra, é crime e pecado, mas às vezes é necessário. Não se pode negar a um religioso o poder de orientar os que aceitam a sua fé, assim como não se pode admitir que queira estender seus dogmas para toda a sociedade, notadamente em contrariedade aos valores democráticos e republicanos. A ministra, interpretando a Constituição, votando pela descriminalização, vota no sentido de permitir procedimentos seguros à integridade física das mulheres e desvela o véu da discriminação. A ministra Rosa Weber deixará a Corte no dia 2 de outubro, quando se aposentará compulsoriamente ao completar 75 anos. Deixará sua marca na história do STF e do Direito Brasileiro.
João Batista Damasceno
Doutor em Ciência Política