Daniel GuanaesDivulgação

Por mais que o senso comum insista em dizer que religião e ciência são realidades não fronteiriças entre si, existem mais conexões entre elas do que muitas pessoas supõem. O fato de serem diferentes nos seus pressupostos, métodos e finalidades não significa que não possam cumprir conjuntamente certos papéis na experiência de indivíduos e sociedades.
Sei que existe uma razão de ser para a leitura que aloca religião e ciência em espectros tão distantes um do outro. Por muito tempo na história da humanidade, a religião ocupou um papel de tutora dos saberes. Praticamente todas as formas de conhecimento humano eram validadas ou não pelas instituições religiosas. Quando a modernidade consolidou a separação entre essas esferas, um efeito colateral inevitável foi, por parte de muitos, a tentativa de garantir o maior distanciamento possível entre elas, inclusive com a relegação da religião a uma espécie de obsolescência em relação a tudo o que era competência da ciência.
Veja o caso da saúde, por exemplo. Se por milênios os sacerdotes, curandeiros e outros representantes das mais distintas instituições religiosas eram solicitados para invocar cura sobre doenças, com os avanços científicos da Medicina recorre-se cada vez mais aos protocolos por ela estabelecidos. De fato, é assim que deve ser. A evolução humana nos faz compreender processos antes obscuros, e nos possibilita lidar racionalmente com realidades que antes tangenciávamos com as crenças.
Acontece que, ainda pensando no caso da saúde, os protocolos científicos não jogam a religião nessa espécie de vala da obsolescência. Pelo contrário, diferentes literaturas recomendam o cultivo de alguma espiritualidade ou o exercício de práticas religiosas como forma de enfrentar dilemas. Os conceitos mais recentes de bem-estar propostos na academia reconhecem a existência de uma dimensão espiritual na constituição das experiências humanas. E é sabido como o enfrentamento de dilemas de saúde mental pode ser potencializado quando acompanhado do exercício da fé.
A participação religiosa está relacionada com efeitos benéficos para pessoas em processo de recuperação de doenças físicas e mentais, por proporcionarem uma construção de sentido e significado para as adversidades vivenciadas, bem como por incutirem esperança nas pessoas. São muitos os benefícios dos que optam por colocar a fé como aliada no processo de promoção da saúde.
É evidente que tais constatações não visam a propor a religião como caminho alternativo de cuidado. Seu papel é fator coadjuvante aos que a ela escolherem recorrer, e não substitutivo. Não obstante, numa sociedade ainda impregnada pelo senso comum que despreza a religião como experiência pré-moderna, é importante lembrar o seu valor. Da mesma forma que abrir-se a compreensões iluminadas pela ciência não significa se negar à fé, reconhecer o papel da religião na promoção da saúde mental não significa prescindir dos métodos científicos.
* Daniel Guanaes, PhD em teologia pela Universidade de Aberdeen, Escócia, é pastor na Igreja Presbiteriana do Recreio, no Rio de Janeiro, e psicólogo clínico