* Irene Ciccarino é doutora em gestão e pesquisadora Instituto Universitário de Lisboa (BRU-ISCTE-IUL)Divulgação

Marx, ao observar a história como construto científico, concluiu que ela se repete primeiro como tragédia, depois, como farsa. Assim, assistimos anualmente enchentes urbanas crônicas, que desvelam desigualdades socioeconômicas e ambientais. Um pulsar frágil, quase afogado, clama por justiça. Cada inundação é um capítulo, uma narrativa oculta entre as ruas e os rios, onde a esperança busca emergir dos recantos afundados da metrópole. Mergulhamos em um debate que transcende enlameado onde ciências sociais e urbanas tentam dar sentido às decisões políticas e ao sofrimento humano.
No cerne da discussão, é imperativo reconhecer que as enchentes urbanas não resultam apenas da chuva intensa, mas de uma intricada teia de fatores. Compreendemos que as áreas mais pobres enfrentam uma carga desproporcional de impactos ambientais negativos, adentrando o terreno complexo do racismo ambiental. Sim, a pobreza tem cor e gênero, resultando de violações sistemáticas dos direitos fundamentais que aprofundam as vulnerabilidades entre os vulneráveis. Nele, os bairros populares encaram não apenas desafios naturais, mas também as consequências de políticas públicas historicamente desfavoráveis.
Em termos nacionais, o Atlas de Desastres Naturais informa que, entre 2012-2021, 211 milhões pessoas foram afetadas de alguma maneira por desastres gerados por fenômenos hidrometeorológicos em cidades brasileiras. Em 2023, o CEMADEN (Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais) estimou o imenso contingente de 925 mil pessoas morando em áreas com risco de enchentes ou deslizamentos no Estado do Rio de Janeiro. As pessoas expostas ao risco desses desastres não podem esperar. Portanto, adaptações e mitigações são necessárias. Por um lado, é preciso ter planejamento contra crises e desastres, e por outro, medidas de engenharia, como construção de diques, piscinões ou barragens.
A hidrologia, que muitas vezes é vista como uma disciplina distante das questões sociais, revela-se como peça-chave nesse quebra-cabeça urbano. A incapacidade do solo impermeável de absorver a água da chuva intensa contribui para o escorrimento superficial, impactando diretamente as áreas urbanas mais vulneráveis. Nesse contexto, o direito à cidade, entendido como o acesso igualitário aos benefícios urbanos, é comprometido, relegando certas comunidades a condições de risco amplificado.
A gestão inadequada dos resíduos, amiúde resultado da falta de educação da população, é outro elemento crucial. O lixo descartado nas ruas, valões e encostas, durante as chuvas, torna-se uma barreira para o fluxo natural da água, contribuindo para agravar as enchentes. É aqui que o direito à cidade se manifesta, ou melhor, se retrai, uma vez que a população enfrenta as consequências de uma infraestrutura urbana insuficiente e ineficiente.
A ocupação irregular de áreas propensas a enchentes e deslizamentos, como margens de rios e encostas frágeis, ilustra a dimensão urbana do problema. A macrodrenagem, mesmo quando corretamente dimensionada, torna-se obsoleta rapidamente, diante do avanço desordenado da urbanização.
As favelas e bairros formais populares encontram-se em áreas com infraestruturas inadequadas, enquanto o direito à cidade se torna uma aspiração distante, nem imaginada. Portanto, investir em soluções fundamentadas em estudos de drenagem, preservação do solo e planejamento urbano é imperativo para viabilizar uma cidadania material nesses territórios. Drenos eficientes, capazes de gerenciar o acúmulo de lixo, bacias de retenção e infiltração, pisos permeáveis e áreas verdes emergem como elementos-chave para fomentar uma urbanização sustentável e equitativa, ampliando a mobilidade socioespacial das famílias em situação de pobreza e extrema pobreza.
A revitalização de rios, a não ocupação de áreas impróprias e a conscientização, sem estigmatizar o pobre ou criminalizar a pobreza, sobre a importância de evitar desmatamentos e descartar lixo inadequadamente, são pilares essenciais para reafirmar o direito à cidade. Essas ações não devem ser encaradas apenas como soluções técnicas, mas como manifestações tangíveis de justiça ambiental e social.A abordagem aqui elaborada visa não apenas ilustrar elementos interconectados, mas também para provocar uma reflexão profunda sobre a responsabilidade coletiva na edificação de cidades mais justas, onde todos possam verdadeiramente usufruir do direito de habitá-las.
* Allan Borges é doutorando em Direito da Cidade e Pesquisador do NEPEC – UERJ
* Irene Ciccarino é doutora em gestão e pesquisadora Instituto Universitário de Lisboa (BRU-ISCTE-IUL)