Daniel GuanaesDivulgação

A religião antecede a ciência moderna com amplo lastro histórico. E creio que isso não surpreenda mais alguém. O fenômeno religioso acompanha a jornada da humanidade desde os seus primórdios, e essa é uma das razões para que as interpretações religiosas sobre os fenômenos que acometem o ser humano estejam tão consolidadas no imaginário popular.

Por mais importante que seja esse olhar, haja vista o papel que a crença desempenha na formação da subjetividade dos indivíduos, as leituras religiosas deveriam se abrir em alguma medida para novas compreensões acerca de coisas que, antes, eram explicadas apenas pelo prisma da fé.

A saúde mental é uma das áreas onde há mais resistência a essa abertura para a influência de outras ciências e saberes. Entre os povos de fé, ainda existe muita resistência na compreensão científica das questões que envolvem a dimensão psíquica do ser humano. É como se a possibilidade de remodelar nossos olhares sobre tais assuntos afetasse as bases da nossa crença. E evidentemente não é isto que está em jogo. Trata-se apenas de permitir que a aquisição de novas informações aperfeiçoe o nosso olhar e, consequentemente, a maneira como cuidamos de nós mesmos e de quem mais for necessário.

Justamente por isso penso ser importante identificar as fronteiras da religião no cuidado da saúde mental. O papel dela, da espiritualidade e da fé é encorajado nas literaturas de cuidado da saúde mental, pois é sabido o valor positivo destas práticas no tratamento dos que optam livremente por recorrer a estes elementos. Mas é fundamental saber, também, a melhor forma de contribuir.

Entre os discursos que mais ouço, e práticas que mais observo, destaco três pontos que nos ajudam a entender a fronteira da religião na promoção da saúde e do bem estar. O primeiro mostra que a fé jamais deve ser encarada como um caminho alternativo ao cuidado profissional. Há quem diga, equivocadamente, que se temos Deus, não precisamos de mais nada. Daí a importância de lembrar: sempre que desejar, use sua crença como elemento complementar, nunca como caminho substitutivo.

O segundo está na corriqueira identificação de certos quadros clínicos com leituras religiosas estereotipadas. Isso fica evidente em falas que sugerem que pessoas precisam da libertação de alguma força do mal. Daí a importância de lembrar que existem transtornos psíquicos que provocam alterações abruptas de humor, alucinações, delírios e, até, dissociação de personalidade. Claro que é legítimo que se façam preces pelas pessoas, mas não para que a oração venha solucionar um “problema religioso”, que no caso é inexistente ali.

Por fim, é importante demais que se aprenda a compreensão que a ciência oferece sobre os diferentes quadros clínicos, para que se respeite a maneira correta de se referir a eles. Por exemplo, não se fala em cura para aquilo que se sabe não ser doença. Simples assim! Chamar as coisas do jeito certo é também uma forma de proteger as pessoas que sofrem de outros tipos de violência.

Atuando há quase duas décadas na fronteira entre a religião e a saúde mental, sei como esses dois universos se retroalimentam na fomentação de vida com qualidade. Nem por isso deixo de reconhecer os desafios inerentes aos percursos de quem transita por estes caminhos. Quanto mais conseguirmos identificar os marcos dessa fronteira, mais contribuição a religião oferecerá à promoção e ao cuidado da saúde mental.
* Daniel Guanaes é PhD em teologia pela Universidade de Aberdeen, Escócia, é pastor na Igreja Presbiteriana do Recreio, no Rio de Janeiro, e psicólogo