João Batista Damasceno, desembargador do TJdivulgação
Tais transformações no modo de pensar e agir colocou a pessoa humana no centro das existências e estabeleceu-se a crença de que o ser humano era o senhor da natureza. O iluminismo alterou completamente a forma com a qual as pessoas entendiam as relações estabelecidas no mundo em que viviam, influindo nas crenças, formas políticas, artes e todas as demais atividades humanas. Mesmo a forma com que se faziam os jardins foi alterada por aquele movimento.
Até o renascimento os jardins eram, em regra, cultivados pelos monges que plantavam ervas medicinais, verduras e algumas flores nos monastérios. O florescer do capitalismo, enriquecido com o ouro que ia das Minas Gerais para a Inglaterra, alterou o modo de vida da burguesia e da aristocracia. As casas ganharam feições suntuosas enfeitadas com jardins extravagantes. Um dos primeiros estilos de jardins foram os desenhados com plantas divididas em canteiros em forma de figuras ou em cercas vivas. Os jardins desenhados tornaram-se elaborados e geométricos, tendo aumentado a quantidade de plantas levadas da América, da África ou da Ásia, após os “grandes descobrimentos”. Não tardou para que as plantas também fossem objeto de intervenção em suas formas e as árvores e arbustos passaram a ser podados para que tivessem expressões geométricas ou formas de animais.
Na França o exemplo clássico de plantas podadas em formas geométricas é o Jardin Des Tuileries ou Jardim das Tulherias. No início do século XX, em decorrência do primeiro aterro feito nas praias que iam do Centro até onde hoje é a Urca foi construída uma praça no estilo do jardim francês. É a Praça Paris, na Glória, com seus arbustos recordados em formas geométricas ou em forma de animais. Tal estilo representava a pretensão de domínio do homem sobre a natureza.
O progresso técnico e científico deu às sucessivas gerações a pretensão de domínio sobre a natureza, desprezando os danos ao meio ambiente e as consequências que tais intervenções poderiam ter.
A catástrofe que se abateu sobre a cidade de Porto Alegre precisa ser debitada ao desleixo das políticas governamentais que não cuidaram das barragens e comportas para evitar tamanhos danos, mas está, também, relacionada com as intervenções que se fizeram na região ao longo dos últimos séculos. A cidade de Porto Alegre cresceu avançando sobre o Rio Guaíba. Do fim do século 19 até a década de 1970, a cidade se expandiu sobre o manancial, apropriando-se de parte da enseada.
Eu estive em Porto Alegre depois da revitalização da orla, onde a arquitetura do espetáculo transformou os antigos galpões do porto em polo gastronômico e de diversão, com derrubada do muro que fazia a contenção das enchentes. De aterro em aterro, a cidade cresceu, diminuindo o leito original do rio para o escoamento das águas nas grandes chuvas.
As cidades hoje são administradas tomando como referência o interesse do mercado. A urbanização do já urbanizado, comum nas cidades brasileiras, atende ao interesse do marketing político, bem como das empreiteiras, enquanto áreas na periferia demandam os mais elementares serviços de saneamento. A ausência de políticas públicas habitacionais subordina o direito de moradia à possibilidade de acesso à casa própria por meio do mercado imobiliário. Quem não dispõe de meios para aquisição de moradia, pelo mercado, improvisa a construção da própria casa própria em seus momentos de lazer, em loteamentos nem sempre regulares ou em áreas, não edificantes, não apropriadas pelo mercado imobiliário. Esta é a origem das favelas. Se tais áreas fossem edificantes a especulação imobiliária delas já teriam se apropriado, tornando-as inacessíveis para os componentes do mundo do trabalho.
Em 2011 tivemos um desastre ambiental de grande proporção nas cidades serranas do Rio de Janeiro. Em 2020 idêntico fenômeno se abateu sobre o sudeste de Minas Gerais. Agora foi em Porto Alegre. É momento de solidariedade aos atingidos pela catástrofe no sul. Mas igualmente é preciso entender que tais eventos têm causas e que estas podem ser evitadas ou minoradas por adequadas políticas públicas e cuidado adequado como meio ambiente. Embora não seja hora de apontar o dedo para os culpados é preciso termos em mente quem são os responsáveis. Na mitologia grega, quando Édipo descobriu que a desgraça que se abatia sobre Tebas se devia ao fato de ter casado com a própria mãe, não se desculpou dizendo que não sabia do parentesco, nem disse que não era hora de buscar o culpado. Furou os próprios olhos e partiu da cidade.
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