O poder das vozes
Dei à minha filha o nome de Elizabeth. Foi uma homenagem à minha primeira professora, do antigo primário.
Dei à minha filha o nome de Elizabeth. Foi uma homenagem à minha primeira professora, do antigo primário.
Eu engravidei sem grandes intenções.Já pedi perdão à minha filha por isso. Um dia, em uma longa conversa, em que ela desentendia a ausência do pai, expliquei.Tinha 20 anos e ele 22. Ele quis que eu tirasse. Eu concordei. Eu sofri. Eu discordei. Eu decidi. Ele deu a mim, então, a responsabilidade do cuidar.
Foi em uma noite, sozinha. Entre choros e antecipações de como seria o amanhã,eu decidi.Com a barriga dizendo a vida que crescia, eu fui amando minha filha mais do que a tudo nesse mundo.
Minha mãe havia morrido um pouco antes da minha gravidez. Mas as suas vozes prosseguiam sussurrando o correto da vida.Mulher simples, lavadeira, arrumadeira da casa dos outros, doceira nos finais de semana, criou a todos nós. Eu sou a caçula de cinco irmãos.
No velório da minha mãe, minha professora estava.Sentamos juntas. E ela observou as coroas.
Eu apresentei minha professora dizendo ser ela uma rainha.E foi.Não me lembro do conteúdo das matérias. Eu era muito pequena. Lembro-me das suas atitudes. Diferentemente da famosa Rainha da Inglaterra, minha professora não usava coroa, coroava a nós com o título de os mais amados do mundo.Era um olhar de acolhimento. De consciência da profissão escolhida. Da certeza de professar a crença em cada um de nós.
No dia do velório da minha mãe, pássaros coroavam a jornada da nossa casa até o cemitério.Alguns pacientes meus acompanhavam aquele despedir.Sou médica. Desmenti a todos que imaginavam que minha filha fosse ser um impedimento para o meu sonho desde sempre. Desde que minha avó, mãe de minha mãe, se foi, com atendimentos errados.
Um dia, uma colega, no hospital em que trabalhamos, respondeu de forma impensada a um reclamo de uma paciente. Ela disse, "Desculpa, você é uma entre tantas, eu sei que você está sentindo dor, mas tenha paciência". A paciente repetiu, "Eu sou uma entre tantas". A médica tentou amenizar e piorou, "Sim, é mais uma vida... "
Eu não sei qual seria o complemento, porque a paciente a interrompeu. "É a minha vida, doutora, é a única que eu tenho".
As vozes têm poder.Há vozes que dizem sentimentos lindos em mim. Que coroam os meus dias de ensinamentos para que eu possa ensinar aos meus cotidianos o dever do cuidar. De cada um. De cada vida.
Minha filha tem, hoje, 12 anos. Ainda não tem redes sociais. Decidimos juntas. Eu trabalho muito e amo o que eu faço. Mas sou inteira no acontecimento mais lindo da minha vida, a maternidade.Às noites, eu conto histórias. Algumas de suas avós, de nossos sofrimentos do passado. Outras, lidas de páginas iluminadoras da literatura. Ela gosta. Foi em um desses dias que ela quis saber do pai. E que eu disse o que achei correto dizer.
As vozes que compartilho com minha filha não são vozes de lamúrias por aquilo que não temos. Não são reclamos por aqueles que nos abandonaram. São vozes de realeza, homenageamos sua excelência: a vida.Minha professora Elizabeth, a rainha, nos ensinou, desde sempre, o bom do gostar de viver.
Se tenho algum companheiro hoje? Por que precisaria ter? Por que é tão comum as pessoas perguntarem isso a uma mulher?
Há vozes que não coroam a vida, que nascem dos ditos descuidados.O silêncio também é filho da realeza. E é pai de sons nascidos com cuidado.
Cuidar é o que eu gosto. Da minha filha, da minha vida, das vidas que cruzam o meu caminho e que concedem a responsabilidade do alívio das dores.
Gosto também das minhas cicatrizes. Há poucas no corpo, há muitas na alma. Todas elas se organizam para relembrar, a mim mesma, a mulher que sou.
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