Era 1982, quando a antropóloga, filósofa, historiadora e ativista brasileira Lélia González questionava no Jornal Mulherio a representação dos negros e indígenas nos livros didáticos e sua ausência nos anais da História. Dizia ela: “estamos cansados de saber que nem na escola, nem nos livros onde mandam a gente estudar, não se fala da efetiva contribuição das classes populares, da mulher, do negro, do índio na nossa formação histórica e cultural. Na verdade, o que se faz é folclorizar todos eles.”
Desde que Lélia reivindicou o reconhecimento da população negra na formação do Brasil, houve avanços significativos impulsionados pelas discussões da militância social e das ciências humanas, destacando-se nesse contexto a formulação do conceito de “antirracismo”. Esse arcabouço teórico e prático envolve a educação e o desenvolvimento de uma percepção crítica sobre como o racismo estrutural e institucional afeta diferentes grupos raciais, promovendo a capacidade de reconhecer e principalmente, agir contra injustiças raciais na sociedade.
Foi através da emergência de conceitos como o do antirracismo que foi possível sensibilizar parcela da opinião pública e dos legisladores para a necessidade de aprovar, por exemplo, a lei 12.711/2012, que garantiu cotas para estudantes oriundos de escolas públicas, negros, pardos e indígenas em instituições públicas de ensino superior. Dois anos depois, em 2014 era promulgada também a lei 12.990 que estabelece uma reserva de 20% das vagas oferecidas em concursos públicos no âmbito da administração pública federal, para todos que se declararem pretos ou pardos.
Porém, essas conquistas ainda são insuficientes diante de um país cujo racismo e a violência contra a população negra é sistêmica. Hoje, a diferença salarial entre pessoas pretas e brancas ultrapassa 42%, o desemprego é 71% maior entre negros do que entre brancos, cerca de 70% da população encarcerada é negra, e a cada 10 pessoas assassinadas no Brasil 8 são negras.
A ascensão da extrema direita no mundo torna a reflexão sobre o antirracismo ainda mais necessária, as políticas anti-imigração são um exemplo dessa tendência. Na Hungria, o extremista Viktor Orbán, presidente da nação, afirmou em discurso recente que deseja fechar as fronteiras de seu país para não misturar a “raça húngara” com as demais. Na Argentina, nosso vizinho sul-americano, o presidente Javier Milei incentiva seus apoiadores em atos políticos a chamarem de "negros de merda" a população não branca do país.
O que todos esses líderes têm em comum, além de propagar o racismo, é a admiração por figuras políticas como Donald Trump, que em 2017 se referiu a nações como o Haiti e El Salvador como “países de merda”, e disputa novamente as eleições americanas de 2024 com alta popularidade. E Bolsonaro, ex-presidente do Brasil, que disse em entrevistas públicas que os negros deveriam ser pesados como mercadoria, e que provocou o maior desmonte da história nas políticas públicas destinadas a promover a igualdade racial no país.
É nessa conjuntura que nós, pessoas brancas, precisamos assumir a necessidade de desconstruir padrões e comportamentos, educando-nos sobre as questões raciais. Para um homem branco, ser antirracista pode ser um processo profundamente transformador e, muitas vezes, desconfortável. Confrontar os próprios privilégios raciais e compreender as complexas dinâmicas de poder leva-nos a reavaliarmos as nossas próprias crenças e comportamentos. Porém, só nos entendendo como sujeitos historicamente beneficiados pelo racismo estrutural é que poderemos nos tornar antirracistas, ajudando a promover uma sociedade onde a desigualdade gerada pela cor da pele seja superada definitivamente.
* Sylvio Maurício, professor de História, comunicador popular e fundador do Instituto Cultural Casa da Utopia.
Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor.