Tenho um amigo negro, magistrado, que, em razão do ofício, costuma andar de terno. Por uma série de razões históricas, raciais e sociais, mais de uma vez foi confundido com segurança de shopping. Certa feita, gente boa que é, chegou a levar a senhorinha que pediu ajuda até o local que ela procurava. É um negão de cerca de um metro e noventa, forte, bem-apessoado. Também se sairia bem na nobre missão de segurança. Aliás, antes de estudar e ser juiz, foi porteiro.
Noutra feita, levei minha juíza substituta para uma palestra na Educafro. Enquanto passávamos pelo corredor, eu de terno e ela de tailleur, ouvi uma jovem negra comentar que eu tinha levado minha secretária. Subimos ao palco e expliquei que mulher negra bem vestida, por uma série de razões históricas, raciais e sociais, era vista como secretária e que precisávamos mudar isso, que ela ali estava uma juíza federal aprovada em concurso. Uma heroína, dadas as dificuldades que teve, expliquei que precisamos exigir menos heroísmo de todos. A juíza, anoto, é ex-empregada doméstica, ex-telefonista e ex-serventuária da Justiça Federal.
Várias vezes, juízes(as), delegados(as), médicos(as) são confundidos com trabalhadores de funções subalternas. Isso tem razões históricas, raciais e sociais, como já disse. Embora seja desagradável, não vejo essas confusões necessariamente como racismo ou maldade. Boa parte das vezes é só o que as pessoas se acostumaram a ver. Aquela senhorinha e aquela moça negra reagiram pelo que ainda é a realidade: uma desigualdade de representação nas classes mais altas, nos cargos mais elevados e assim por diante. Isso não se muda com ódio, mas de outro modo.
Creio que esse tipo de confusão tem um jeito bom de acabar: enfrentar o problema de fundo. Agir. Transformar a realidade. Acostumar a sociedade a pessoas negras em cargos elevados, e isso depende de fornecer conhecimento. Entre outras medidas nesse propósito, criei um projeto de apoio para termos mais magistrados negros. Motivo? Os negros são 56% da população e apenas 14% da magistratura. Já foi pior: eram menos de 3%. Estamos progredindo. Tive o apoio do Frei David e de vários empresários e professores e em pouco tempo já aprovamos dez pessoas negras para Juiz ou Promotor de Justiça.
Em tempos em que mentes pequenas trabalham com revanche, segregação e exclusão de aliados, em que muitos investem em ódio e ressentimento, em que vários querem imunidade para se vingar de modo aleatório, a verdade é que a transformação da realidade passa por caminhos mais elevados. É uma tolice discutir "apropriação cultural" de tranças ou se brancos podem preparar feijoada. O que muda a realidade é estudo e esforço, é trabalho, é criar e aproveitar as oportunidades. Isso é feito com a união de homens e mulheres de boa vontade.
O que funciona é a solução pacífica dos conflitos, a união de todos, a fraternidade e a solidariedade. O que funciona é dar condições de estudo, ensinar que é preciso superar limites e investir no sonho. Uma leitura séria do preâmbulo da Constituição Federal ou um estudo das lições de Jesus Cristo pode ensinar o caminho. Parar de reclamar de tudo e fazer alguma coisa é algo miraculoso e precisa ser feito.
Vale lembrar o que diz os primeiros artigos da Constituição. Temos que investir nos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa. O objetivo tem que ser construir uma sociedade livre, justa e solidária, erradicar a pobreza de brancos, pardos, pretos e indígenas. Precisamos parar de fazer “nós contra eles” e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade ou quaisquer outras formas de discriminação.
Fazendo a coisa certa pelo tempo necessário, as pessoas não saberão se pretos bem vestidos são promotores de justiça ou seguranças. Creio que o melhor jeito de fazer isso é trabalhar para que em todos os lugares exista boa quantidade de todo tipo de cores de pele, gênero e visões de mundo. O nome disso é diversidade e ela vem quando damos a todos oportunidades justas, ou ao menos razoáveis, para haver estudo e crescimento.
* William Douglas é professor de Direito Constitucional e ativista na área há mais de 25 anos
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