Fomos surpreendidos com um anúncio do governo federal sobre a criação de uma plataforma de streaming gratuita para filmes nacionais.
A ideia, fruto não de estudos cuidadosos, mas de um ufanismo a partir de evento isolado, levanta questões importantes sobre planejamento, custo, viabilidade e impacto no mercado. O problema não é apenas o licenciamento de conteúdo — algo que plataformas privadas já fazem —, mas o custo de montar e manter todo o sistema de armazenagem e transmissão.
Serviços como Netflix e Amazon gastam bilhões em infraestrutura e conteúdo, tendo uma extensa grade de produtos e uma arrecadação que custeia todo o sistema.
Será que o governo espera que alguém acredite que módicos R$ 4,2 milhões serão o suficiente para criar esse projeto? Não serão. Eles vão funcionar tão somente para “abrir a porteira” para mais gasto de dinheiro público a fundo perdido, tal como as refinarias, que já gastaram muito mais que o previsto e permanecem inconclusas.
Historicamente, o governo não tem bom desempenho na gestão de estatais, que frequentemente operam com prejuízo. Então, por que acreditar que um serviço de streaming estatal, sem receita direta, é uma boa ideia? Esse tipo de iniciativa, se levada adiante, será mais um ralo de dinheiro público.
Além disso, há uma questão prática: como serão comprados ou licenciados os filmes para essa plataforma? Licitação? Se sim, isso adiciona um componente burocrático que pode travar o sistema e aumentar os custos. Também é difícil imaginar que plataformas como Netflix e Amazon continuarão com a mesma disposição para pagar por conteúdo brasileiro se ele estiver disponível gratuitamente em uma plataforma concorrente estatal. Isso pode acabar desincentivando a produção e prejudicando o próprio mercado nacional.
Outro ponto crítico é o papel do governo na comercialização de filmes. A intervenção estatal em um mercado consolidado é questionável. Bons conteúdos, se forem realmente competitivos, encontrarão espaço nas plataformas privadas, que já têm o alcance e a estrutura para promover o cinema nacional. Forçar um canal estatal é tentar manipular artificialmente uma dinâmica de mercado que já funciona por mérito e demanda.
Recentemente, o governo quis impor cotas de filmes nacionais nos cinemas. A aposta está sendo dobrada: passou de tentar forçar a presença do produto nacional no supermercado para, agora, querer ser dono do supermercado! Um supermercado que não vai vender nada.
A mesma linha de ideias passa por criar cotas para obras nacionais no streaming. Esta proposta, anote-se, é muito mais econômica. Qual a necessidade de se criar toda uma plataforma se já existem outras?
Isso, repita-se, em um país onde as estatais rotineiramente dão polpudos prejuízos.
Além de todos esses inconvenientes, a criatividade revela que alguns gestores públicos parecem viver em um mundo de Nárnia ou Pasárgada. Há uma grave desconexão com a realidade fiscal do país. O Brasil enfrenta um cenário de crise econômica, com cortes em áreas essenciais como saúde e educação. Universidades federais estão sem dinheiro para itens básicos como papel higiênico, e o governo decide criar um serviço de streaming? É uma decisão que expõe a falta de prioridade e de visão estratégica.
É essencial reforçar que investir em arte e cultura é absolutamente necessário. O cinema nacional merece incentivo e valorização, mas o caminho para isso é a criação de conteúdos de qualidade, que atraiam público e despertem o interesse das pessoas e, consequentemente, da iniciativa privada. O que faz diferença é ter filmes que tenham apelo comercial, o que fará com que as plataformas privadas busquem e valorizem esse conteúdo. Criar um sistema artificial e caríssimo, sem lógica de mercado, só vai gerar um mercado garantido para produções descomprometidas com o esforço por qualidade e trabalhando como se fossem novos servidores públicos não concursados.
O governo deve reconhecer que a distribuição de filmes é uma atividade tipicamente comercial e que o papel estatal deve ser de fomento à produção, não de intervenção no mercado. Ele pode — e deve — apoiar a produção de cinema nacional com ferramentas que incentivem a qualidade e a competitividade, mas se intrometer na comercialização é um erro estratégico. A intervenção direta no mercado, criando uma concorrência artificial, só vai afastar a iniciativa privada e gerar custos permanentes para o Estado.
Promover o cinema nacional é importante, mas criar uma plataforma estatal sem um modelo de retorno financeiro sustentável e com impacto negativo no mercado é um erro estratégico. Essa proposta é uma ideia deslumbrada e irresponsável. Além do desperdício de recursos públicos, representa um verdadeiro desestímulo a produções de qualidade.
Se o governo realmente quer fortalecer o cinema nacional, deve focar em criar condições para a produção de qualidade, e não em criar uma plataforma artificial e deficitária que distorce o mercado e consome recursos públicos. É uma vaidade que o país não pode se dar ao luxo de bancar.
Antonio Cabrera e William Douglas são autores do livro “Liberdade, Liberdade!: O Direito de Agir, Pensar e Crer”, Editora LVM. Antonio Cabrera é empresário. William Douglas é professor de Direito Constitucional.