Priscila SeixasDivulgação
Em tempo de fortalecimento das redes e, dicotomicamente, o enfraquecimento da memória (aliás, uma sequela de quem passou pela Covid-19), vale lembrar que, ao longo do luto coletivo e do isolamento social agudo, artistas, técnicos, produtores e gestores culturais simplesmente não tinham qualquer garantia para colocar comida na mesa, honrar compromissos, manter a família em segurança. Casas de cultura, teatros, cinemas, centros artísticos — tudo fechou. Foi nesse vácuo de políticas públicas, diante da inércia deliberada do governo federal à época, que parlamentares conduziram a articulação de um projeto de lei que garantisse repasse direto de recursos para o setor cultural.
Aprovada com amplo apoio no Congresso, a Lei Aldir Blanc destinou R$ 3 bilhões do Fundo Nacional de Cultura a estados e municípios, obrigando-os a criar editais públicos e mecanismos de fomento direto à cultura. A medida não só atendeu a uma necessidade urgente como rompeu, ainda que temporariamente, com a lógica concentradora da política de incentivo via isenção fiscal, até então centralizada na Lei Rouanet. Ou seja, estamos no mesmo patamar de R$ 3 bilhões de 2020, a um ano de novas eleições presidenciais, e a Cultura renova seu lugar na fila da encruzilhada.
Essa nova abordagem — descentralizada, federativa e voltada aos que realmente vivem da cultura — respondeu a muitas das críticas acumuladas ao longo dos anos. Críticas legítimas, mas também deturpadas, que alimentaram uma guerra cultural virulenta durante o governo Bolsonaro. A Lei Rouanet foi convertida em símbolo de supostos privilégios e “mamatas”, descolando-se completamente de sua complexidade técnica e histórica. A desinformação transformou um instrumento de fomento em palanque ideológico para o ódio à cultura e seus trabalhadores.
Mesmo diante desse cenário adverso, a LAB não só foi executada com sucesso como se transformou em referência. Em 2022, foi aprovada a Lei Aldir Blanc 2, transformando a política emergencial em permanente, com previsão de repasses anuais até 2027. No mesmo ano, também foi aprovada a Lei Paulo Gustavo, com aporte emergencial ao setor audiovisual e outras linguagens culturais. Ambas as leis foram vetadas por Jair Bolsonaro, mas os vetos foram derrubados em votação histórica no Congresso e no Senado — sinal inequívoco de que a cultura resistia e reunia força política suficiente para se manter em pé.
O ano de 2023 marcou o retorno do Ministério da Cultura, extinto em 2019, e a retomada da esperança de reconstrução institucional. A posse da ministra Margareth Menezes representou mais do que um aceno simbólico: foi a consagração da cultura como vetor de cidadania, memória e desenvolvimento.
No entanto, o corte orçamentário agora aprovado pelo Congresso em 2025 soa como um alarme. Reduzir em 84% o valor destinado à LAB significa minar o funcionamento da política antes mesmo de ela atingir sua maturidade. Significa enfraquecer os sistemas estaduais e municipais de cultura, muitos dos quais só conseguiram funcionar graças aos repasses da LAB. Significa, sobretudo, comprometer o direito constitucional ao acesso à cultura em um país continental, marcado por desigualdades profundas e onde a maioria dos municípios sequer possui um teatro ou um cinema.
Em nota conjunta, o Ministério da Cultura e a Casa Civil garantiram que o governo irá suplementar os recursos conforme a execução for aferida em julho. A sinalização é importante, mas não resolve o problema central: a cultura brasileira segue refém da instabilidade orçamentária e da disputa ideológica.
A institucionalização de políticas públicas, especialmente em setores como cultura e educação, não pode depender da boa vontade ou da correlação momentânea de forças no Congresso.
Desenvolvi pesquisa de doutorado analisando a midiatização da Lei Rouanet, com ênfase nos efeitos do discurso de ódio, na manipulação de dados e no processo de esvaziamento simbólico das políticas culturais no Brasil. A tese foi concluída em 2023, no mesmo período em que a Lei Aldir Blanc começava a se consolidar como política pública permanente. Dois anos depois, observo com preocupação a tentativa de inviabilizar a cultura por meio do estrangulamento orçamentário — uma estratégia menos ruidosa, porém igualmente eficaz no desmonte de um setor fundamental para a democracia.
A cultura brasileira resistiu ao apagamento institucional de 2019 a 2022. Resistiu com mobilização, criatividade e articulação política. Mas a resistência precisa ser sustentada por políticas sólidas, orçamento contínuo e reconhecimento público. A Lei Aldir Blanc é mais do que um instrumento técnico de fomento: é um pacto social pela diversidade, pela memória e pela dignidade de quem faz arte neste país. Cortá-la é, mais uma vez, repetir o erro de tratar a cultura como gasto — quando, na verdade, ela é um dos maiores investimentos que uma nação pode fazer em seu próprio futuro.
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