ALESSANDRO MARCUS GONÇALVESDivulgação

Situações trágicas na saúde pública geram comoção e muitas vezes levam à acusação automática de erro médico. No entanto, nem todo desfecho negativo é fruto de falha profissional. Responsabilizar o médico sem considerar o colapso estrutural do SUS é um risco jurídico e social.

Segundo a Demografia Médica de 2025, apenas 7,7% dos cirurgiões brasileiros atuam exclusivamente na rede pública. O dado expressa a baixa adesão ao SUS e os efeitos da sobrecarga, da escassez de recursos e da insegurança profissional que cercam quem permanece no sistema.

Importa lembrar que médicos do SUS não respondem automaticamente por danos decorrentes do atendimento. Ao contrário do Estado, cuja responsabilidade é objetiva, a dos profissionais é subjetiva. Isso significa que, para haver condenação, é preciso comprovar culpa: negligência, imprudência ou imperícia. Essa exigência não protege o erro, protege a justiça.

A medicina não é uma ciência exata. Atua sobre variáveis biológicas, respostas imprevisíveis e decisões urgentes. Um mesmo procedimento pode salvar cem pacientes e falhar com um, e isso não configura erro. Quando o sistema impõe jornadas exaustivas, escassez de insumos, plantões sem estrutura e leitos superlotados, o resultado negativo pode ser fruto da falha do próprio Estado, não de quem está na linha de frente tentando salvar vidas com o mínimo.

Erro médico e falha sistêmica não são o mesmo. A ausência de condições adequadas, materiais e humanas, não deve recair sobre o profissional que atua no limite. Culpar o indivíduo por omissões institucionais é inverter a lógica da responsabilidade.

A exigência de prova de culpa também não impede a responsabilização de erros reais. Quando comprovada a conduta culposa ou dolosa, o Estado, após indenizar o paciente, pode exercer o direito de regresso contra o médico, conforme o Tema 940 do STF. O paciente está juridicamente amparado. Mas o médico também precisa estar protegido contra acusações infundadas.

Responsabilizar automaticamente o médico por algo que foge do seu alcance seria, além de injusto, perigoso. Eles se tornariam bodes expiatórios de um sistema à beira do colapso, estimulando uma perigosa medicina defensiva: em vez de atenderem com liberdade técnica, passariam a se guiar pelo medo, comprometendo a própria finalidade da profissão.

Se cada falha estrutural for tratada como culpa individual, não haverá mais incentivo para permanecer no setor público, e como mostram os dados, já são poucos os que o fazem. Em outras palavras, o risco não seria apenas jurídico: seria social. Estaríamos afastando médicos da linha de frente, comprometendo o atendimento nas periferias e nos plantões que ninguém quer assumir. E quem mais perderia seria a população que mais depende do SUS.

É por isso que a Justiça precisa ser técnica, sim, mas também responsável. Ela não pode lançar pedras no escuro: deve agir com consciência, sensibilidade e conhecimento da realidade. É preciso proteger, com equilíbrio, os direitos individuais e a própria existência da saúde pública no Brasil.
Alessandro Marcus Gonçalves é advogado especialista em Direito Médico, mestre em Direito da Saúde, membro da Associação Latino-americana de Direito Médico (ASOLADEME -RJ) e sócio-fundador do A. M. Gonçalves Advogados