Isa Colli é jornalista e escritora Divulgação

Um clique. É o que basta para transformar a vida de uma criança em espetáculo — para o bem e, muitas vezes, para o mal. Um vídeo viral, expondo comportamentos que ultrapassam a inocência infantil, reacendeu um debate urgente: até que ponto nossas escolhas digitais respeitam os limites éticos, a segurança e a saúde emocional dos pequenos?

A vida humana é moldada por normas desde o primeiro suspiro. O nascimento é registrado oficialmente; a educação é obrigatória; o casamento, quando ocorre, segue regras civis; até a morte exige documentação formal. Essas normas não existem para sufocar a liberdade, mas para garantir direitos, proteger vulnerabilidades e organizar a convivência social.

No ambiente digital, porém, essa lógica ainda engatinha. Se no mundo físico jamais deixaríamos uma criança sozinha em uma rua movimentada, nas redes sociais muitas vezes permitimos que ela circule livremente, visível para milhões de estranhos. Se aceitamos que há normas para protegê-la no espaço público, por que resistimos tanto a criar e cumprir regras que assegurem sua proteção no espaço virtual, igualmente público e ainda mais permanente?

Hoje, muitas crianças são tratadas como produtos de consumo. Fotos, vídeos e momentos antes íntimos viram conteúdo para alimentar um público sedento por novidades. O que antes era um registro familiar se tornou matéria-prima para algoritmos que ditam tendências e moldam comportamentos.

Foi nesse contexto que surgiu a “Lei Felca”, inspirada por um caso emblemático de exposição precoce. A repercussão levou a prisões e à proposta de regulamentar a presença infantil nas redes. Mas será que estamos realmente à frente desse jogo ou apenas reagindo a ele?

Há pais que, movidos pelo orgulho ou pela busca de oportunidades, transformam o talento dos filhos em vitrine digital — e, muitas vezes, em negócio. Não é raro ver crianças com agendas mais cheias que a de um executivo, ensaiando, gravando, posando, sempre sob o olhar atento de uma câmera. Quando o incentivo se transforma em cobrança, o brilho do dom natural se apaga, substituído por cansaço e obrigação. A infância não é palco de lucro, mas terreno fértil para afeto, aprendizado e liberdade de errar, brincar e sonhar. Nenhum número de curtidas vale o preço de um sorriso espontâneo.

A regulamentação é fundamental, mas não basta. Sem educação digital e afetiva, continuaremos transferindo a responsabilidade de proteger crianças de um lado para outro — das famílias para as plataformas, das plataformas para o Estado, do Estado para as escolas. É urgente resgatar um princípio simples: a infância é território sagrado.

Isso significa repensar hábitos cotidianos. Escolas precisam ensinar educação digital com a mesma importância que matemática ou português. Pais devem trocar parte do tempo de tela por conversas olho no olho, escuta atenta e brincadeiras. Plataformas devem priorizar a privacidade e a segurança de menores, mesmo que isso reduza engajamento. E políticas públicas precisam colocar a proteção infantil acima de interesses comerciais.

Proteger a infância na era digital exige equilíbrio. É possível incentivar talentos, registrar memórias e até compartilhar momentos, mas sempre com limites claros e respeito ao tempo de cada criança. O problema não é mostrar ao mundo que nossos filhos existem; é permitir que o mundo os molde antes que estejam prontos para isso.

A infância não precisa ser documentada a cada passo, nem transformada em conteúdo para conquistar seguidores. Ela precisa ser vivida. Longe das câmeras, dos algoritmos e das métricas, há um espaço silencioso onde as crianças podem crescer com liberdade, segurança e amor — e esse é o maior presente que podemos oferecer a elas.
Isa Colli, escritora e jornalista