Suzana GoldbergDivulgação

O tempo presente exibe um paradoxo inquietante: a normalização do ódio como forma de convivência social. Quando a irracionalidade se instala como regra tácita, o sintoma deixa de ser mero acidente psíquico e passa a constituir o pano de fundo da vida em comunidade. A doença de um indivíduo já não se restringe à sua interioridade, mas torna-se reflexo do corpo social.
A metáfora da labirintite é elucidativa. No nível individual, remete à perda do equilíbrio, à vertigem que desorganiza a percepção e confunde os passos. No plano coletivo, traduz-se em um zeitgeist marcado por desorientação, violência e medo. Vivemos em estado permanente de “tontura moral”, em que referências éticas e afetivas se dissolvem diante do espetáculo da brutalidade. Basta observar como cenas de guerras transmitidas em tempo real ou vídeos de violência circulando nas redes sociais já não causam choque, mas consumo, quase entretenimento.
Esse cenário pode ser lido à luz do que Freud descreveu como pulsão de morte. Aquilo que, no indivíduo, aparece como tendência inconsciente ao retorno ao inorgânico, quando deslocado para o corpo social se traduz em guerras recorrentes, práticas de violência e na estetização da morte. O silêncio que deveria acompanhar a finitude é substituído por cores vivas e transmissões incessantes, transformando a dor em mercadoria simbólica.
Mais inquietante ainda é que tudo isso se apresenta como normal. Erich Fromm já advertia que sociedades inteiras podem adoecer e, mesmo assim, viver sua patologia como se fosse racionalidade. A alienação cotidiana, o consumo compulsivo e a indiferença diante do sofrimento alheio são experimentados como parte de uma ordem legítima. Nesse sentido, o que parece normalidade é, na verdade, uma forma coletiva de desrazão: uma patologia social travestida de equilíbrio.
Essa naturalização do absurdo ecoa a análise de Foucault em História da Loucura na Idade Clássica. Para ele, razão e desrazão não são categorias fixas, mas fronteiras históricas criadas para excluir certos sujeitos e legitimar formas de poder. O que antes se aplicava aos “loucos”, hoje se reproduz em escala global: regimes de verdade contemporâneos nos fazem aceitar a brutalidade, a desigualdade e a irracionalidade como inevitáveis, parte da vida cotidiana. Pergunto-me se não estamos, todos, presos a esse dispositivo, hipnotizados pela repetição do intolerável.
Diante disso, torna-se urgente reconhecer que a saúde mental não é apenas uma questão clínica ou biomédica. A desrazão — estetizada pelo espetáculo e alimentada pelo ódio — é também um fenômeno político, cultural e espiritual. O sofrimento que parece íntimo é, na verdade, o retrato de uma sociedade inteira que se acostumou à vertigem e, por isso mesmo, perdeu o chão.
O desafio é recuperar a sensatez e a delicadeza como antídotos à tontura coletiva. Isso significa restaurar a confiança nos vínculos humanos, reabilitar a palavra como espaço de encontro e reinstalar a dignidade como eixo da vida em comum. Se a doença é a desrazão compartilhada, a cura só poderá nascer do reencontro com o humano que ainda resiste sob os escombros do espetáculo.
Esse reencontro, no entanto, exige coragem: a coragem de interromper o ciclo hipnótico da violência e da indiferença; a coragem de desobedecer ao imperativo da morte travestido de espetáculo. Só pela recusa em aceitar a irracionalidade como normalidade será possível abrir fendas no muro da desesperança e permitir que a vida, em sua inteireza, volte a respirar.
Suzana Goldberg – Psicóloga e Psicanalista, Mestre em Psicologia Clínica