Ivanir dos SantosDivulgação
Ivanir dos Santos: O Dia da Favela: entre o território da exclusão e o berço da resistência
Refletir sobre o Dia da Favela, em 4 de novembro, é, para mim, mais do que um gesto simbólico, é um ato de memória, justiça e reflexão. Quando penso nessa data, lembro de onde vim: a favela do Esqueleto, espaço que um dia abrigou tantas vidas, sonhos e histórias, e que hoje dá lugar à UERJ. Carrego essa travessia, do menino que cresceu em uma comunidade invisibilizada ao professor e babalawô que hoje caminha pelos corredores da mesma universidade erguida sobre aquele chão.
Essa coincidência geográfica carrega uma profunda metáfora sobre o Brasil. O que foi removido em nome do "progresso" deu origem a um lugar de saber, mas o conhecimento que me formou já estava lá, entre os becos e as casas simples do Esqueleto. A favela me educou antes de qualquer diploma. Me ensinou o valor do coletivo e da resistência. O morador da favela precisa de respeito, e não de piedade. Precisa de consideração, e não de romantização. A favela não é o avesso da cidade, é nela que se produz cultura, saber, fé e economia. O que falta à sociedade é reconhecer essa potência sem tentar enquadrá-la dentro dos limites da carência.
Ao longo dos anos, aprendi que a favela é um território de contradições: lugar da ausência do Estado, assim como a presença mais viva da humanidade. É ali que a solidariedade tem rosto e nome, que a espiritualidade se manifesta não como doutrina, mas como prática de cuidado. É ali que o samba resiste, que o funk denuncia, que a arte grita e que o conhecimento brota da experiência de sobreviver todos os dias.
O que me preocupa é o quanto ainda se insiste em reduzir o favelado à condição de problema social. A favela continua sendo alvo de políticas de controle e não de políticas de direito. Ainda é o território onde o olhar da suspeita chega antes do olhar da empatia. E é por isso que precisa ser mais do que uma data comemorativa, e sim um ponto de inflexão.
O menino que eu fui viu sua comunidade ser apagada dos mapas, mas nunca deixou de acreditar na força desse território. Hoje, como professor, babalawô e militante dos direitos humanos, sei que a minha história é a de muitos. A favela do Esqueleto foi derrubada, mas ela vive em cada gesto de quem luta por educação e dignidade. A universidade que se ergueu naquele solo também precisa reconhecer essa origem. Não há saber legítimo que se construa ignorando as vozes que vieram antes. É herdeira direta dos quilombos, dos cortiços, dos terreiros, das casas que acolhiam quem era rejeitado. Cada beco guarda a memória de um país que tentou apagar sua própria negritude e sua própria pobreza. Mas a favela se reinventa, continua sendo o espaço onde o futuro se desenha com as cores da luta e da esperança.
Na minha trajetória, percebi que o conhecimento pode e deve ser uma forma de libertação. É preciso lembrar que o saber não nasce apenas nas universidades; ele nasce nas cozinhas das mães de santo, nas rodas de samba, nas experiências de quem transforma falta em criação. O conhecimento da favela é vivo, prático, espiritual e afetivo. É preciso ouvir os morros, não como territórios de medo, mas descobrir os saberes. O Brasil precisa reconhecer que o morador de favela não é apenas um sujeito histórico, criador de cultura, formador de opinião e guardião de valores coletivos.
A memória do Esqueleto me acompanha, quando entro na UERJ, sinto que piso num solo sagrado, onde as vozes do passado ainda ecoam, lembrando de onde vim. Falar da favela em primeira pessoa é reivindicar o direito de narrar. É dizer que nós não somos objeto de estudo, mas sujeitos da história. Somos nós que conhecemos as dores da vida nas margens. Somos nós que mantemos viva a fé meio às adversidades. Não quero celebrar, quero reafirmar um compromisso com a memória, com a justiça e o respeito. Reconhecer que o Brasil é feito das suas favelas e das vozes silenciadas. Como homem de axé, intelectual e filho da favela, reafirmo: respeitar o morador da favela é respeitar o próprio Brasil.seguirá viva, não como sinônimo de carência, mas como símbolo de resistência e dignidade.
* Ivanir dos Santos é Babalawò, Prof. e orientador no Programa de Pós-graduação em História Comparada da UFRJ (PPGHC/UFRJ) / Ativista dos Direitos Humanos

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