De tanto ultrapassar fases, vivemos com a cabeça lá na frente, quando o corpo ainda está no momento atualArte: Paulo Márcio
No presente, sem atalhos
Esse episódio também me fez pensar nas vezes em que temos o impulso de pular do presente diretamente para o futuro, na ilusória antecipação de cenas, pensamentos e situações
A fila para entrar no banco já estava grande do outro lado da rua enquanto, na mesma calçada em que eu estava, uma unidade de atendimento da Receita Federal me lembrava da proximidade do início da declaração do Imposto de Renda. Com passos apressados, entrei num prédio em Caxias, numa das últimas manhãs de fevereiro, e cheguei ao oitavo andar, onde havia marcado o meu retorno à yoga. Bati na porta e ninguém apareceu. Sorte que no mesmo andar funciona também um estúdio de pilates, integrado ao de yoga, só que em outra sala. E foi nele que encontrei a ajuda de uma professora: "A yoga já começou, mas tenho a chave de lá. Vou abrir a porta e você entra devagarinho, sem fazer barulho, tá?"
E assim fiz. Ao chegar, avistei um tapetinho vazio e passei a ocupá-lo. Acelerada pelo mundo lá fora, tentei entrar no ritmo da prática gradativamente. E me identifiquei com algumas falas entremeadas no silêncio da aula. Logo compartilhei a mesma dificuldade de uma outra aluna: seguir a contagem pontuada e ritmada da Alessandra, a instrutora. Nosso ímpeto é dizer logo 12345... de forma rápida e encerrar logo a postura ou exercício proposto. Queremos ser cada vez mais velozes.
Já no fim, a Alessandra nos pediu para lembrar novamente o propósito que havíamos pensado no início da aula. Sozinha no meu silêncio, confirmei que não poderia mais chegar atrasada dali em diante. Afinal, como eu não estava presente no começo da prática, não tinha pensado em propósito nenhum. Saí de lá constatando que há um mundo que não vai se render às minhas tarefas e aos meus afazeres. Ufa! Que bom que ele existe!
Enquanto o tic-tac do meu relógio particular me fazia refletir, coincidentemente me deparei, dias depois, com uma espetáculo teatral pautado pelo tempo. 'Salvador, anoiteceu e é Carnaval' se passa numa cidade desencantada, que não adormece nunca. Ninguém lá sonha, nem literalmente nem no sentido figurado. Só há sol, trabalho, produção e cansaço. E até um idioma próprio, com as palavras pela metade, pegando atalho para o fim da frase. Talvez os áudios acelerados no WhatsApp tenham muito a ver com isso. E talvez eu mesma queira pegar atalhos para o fim das contagens na yoga.
Curiosamente, ao sair da peça no teatro do CCBB-RJ, reparei no comentário do motorista de aplicativo: "Vou pegar essa rua à esquerda porque aqui eu ganho de oito a 10 minutos, tá?" Concordei e fiquei pensando no que fazemos com essa poupança de tempo que acumulamos ao pegar atalhos daqui e de lá, entre ruas, palavras e contagens de exercícios.
Esse episódio também me fez pensar nas vezes em que temos o impulso de pular do presente diretamente para o futuro, na ilusória antecipação de cenas, pensamentos e situações. De tanto ultrapassar fases, vivemos com a cabeça lá na frente, quando o corpo ainda está no momento atual. O fato é que, sem respostas e com muitas reflexões, já festejei uma evolução pessoal. Na segunda aula da yoga, cheguei antes do início, com calma e tempo de sobra para me posicionar no tapetinho.
Reparei, então, que o relógio da sala está posicionado de costas para os alunos. E já escolhi um propósito permanente: embalar o momento atual em um belo papel e ainda colocar um laço de fita para fazer jus ao que ele realmente significa: presente!
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