Dono de terreno também será investigado por poluição do solo e dos recursos hídricos, atividade potencialmente poluidora e maus-tratos aos animaisDivulgação/Prefeitura de Nova Iguaçu

Rio - O homem que submeteu um funcionário à condição análoga a escravidão, em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, acreditava estar ajudando a vítima, por ter a abrigado em troca de seus serviços, de acordo com delegado titular da 58ª DP (Posse), José Mario Salomão. Ele foi preso em flagrante pelo crime, nesta segunda-feira (27), em uma ação da Guarda Ambiental Municipal (GAM). Nesta terça-feira (28), equipes interditaram o terreno onde o trabalhador foi resgatado, na Rua Fidelis de Almeida, no bairro Carlos Sampaio, em Austin. 
"Inicialmente, ele achava, no íntimo dele, que ele estava ajudando. Ajuda desse tipo, tratar uma pessoa pior que um cachorro, pior que qualquer animal? Nem animal merece aquilo. Por que, pelo menos, não alimentava ele? Por exemplo, o 'cara' não tem condição nenhuma, vou dar almoço e janta para ele cuidar do meu terreno. Ainda assim, seria condição análoga a (trabalho) escravo, mas nem isso, nem água. Água potável é básico para viver. Não tinha, ele nunca procurou providenciar. São dois anos, tempo para lá de suficiente para você acordar. Isso é indigno, isso não é justo. É muito triste o que aquele homem estava passando", afirmou o delegado.
De acordo com titular da distrital, a vítima vinha cuidando de porcos há cerca de dois anos e em troca, poderia morar no casebre que ficava no terreno do homem. O local só contava com três paredes, tinha buracos no teto, não tinha banheiro e as necessidades fisiólogicas eram feitas em um buraco enterrado no chão. O homem não recebia salário, comida ou água. Ele se alimentava com a lavagem dos animais ou quando vizinhos lhe davam comida, e bebia água do córrego onde dejetos dos bichos eram despejados.
"Esse indivíduo comia comida podre, os guardas municipais narraram que o cheiro era insuportável dentro da casa, que a lavagem estava recheada de larvas e cheia de moscas. Ele comia essa lavagem que dava para os porcos e bebia água do córrego, para onde escorria a urina e as fezes dos porcos, então, ele vivia numa situação muito degradante. Ele narra que, pelo menos, dois anos ele já estava lá nessa situação", afirmou Salomão.
Ainda segundo o delegado, a vítima relatou que aceitava as condições sub-humanas, porque não tinha onde morar, e o homem se aproveitava da situação para explorá-lo. "O dono do terreno, sabendo disso, se aproveitava dessa circunstância. Ele não ganhava nada, não ganhava dinheiro, não ganhava comida, não ganhava água. Ele só tinha a atribuição de cuidar dos porcos e, por conta disso, habitar o que seria um estoque, porque aquela casa, inicialmente, a ideia era guardar a lavagem e tudo dos porcos. Ali não dá para uma pessoa morar, o vaso dele era uma buraco dentro da casa, ele fazia as necessidades em um buraco enterrado na terra". 
De acordo com a Prefeitura de Nova Iguaçu, uma equipe da Secretaria Municipal de Assistência Social (SEMAS) acolheu a vítima e ofereceu os primeiros cuidados básicos. A pasta também vai tentar localizar a família do homem resgatado. O caso foi descoberto após uma denúncia anônima feita à GAM. Os agentes estiveram no local, onde encontraram a vítima e o dono do terreno, que foram encaminhados para à delegacia. 
No terreno, as equipes também constataram uma série de irregularidades, como abate ilegal de animais, dispersão de vísceras na margem de um rio, contaminação do solo por vermes e comida em estado de putrefação. A 58ª DP abriu uma investigação para apurar os possíveis crimes ambientais cometidos pelo homem, como maus-tratos, atividade potencialmente poluidora e poluição do solo e de recursos hídricos. Na delegacia, o preso se resgardou ao direito de falar somente em juízo. 
Crise econômica agrava casos de trabalho escravo
Há pouco mais de uma semana, no último dia 20, 15 paraguaios foram resgatados em situação análoga à escravidão, em uma fábrica clandestina de cigarros, em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense. Os estrangeiros vieram para o Brasil com a promessa de trabalharem oito horas por dia, em São Paulo, mas não receberam nenhuma remuneração, não puderam manter contato com familiares, tiveram seus celulares confiscados e locomoção restrita. O grupo trabalhava todos os dias, por 12 horas, sem descanso semanal e era obrigado a morar no local, que tinha condições precárias de higiene e habitação. 
De acordo com a Coordenadora Regional da Coordenadoria de Erradicação do Trabalho Escravo e Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (Conaete) do Ministério Público do Trabalho do Rio (MPT-RJ) e gerente do projeto Ação Integrada, a procuradora Guadalupe Louro Turos Couto, a crise econômica, já que as pessoas acabam se submetendo à condições degradantes para garantirem sua subexistência, e a impunidade são alguns dos fatores que contribuem para que casos como esses tenham se agravado recentemente. 
"A gente está vivenciando uma crise econômica, as pessoas precisam garantir a subexistência; uma certeza, também, por parte dos escravocratas, de impunidade; uma ganância exacerbada; ao mesmo tempo, a gente está vivenciando, uma terceirização irrestrita, que causa isso, porque são muitas empresas prestadoras de serviço sem lastro econômico-financeiro que intermedeiam essa mão de obra e os trabalhadores acabam sendo submetidos à essas condições análogas à escravidão. Nós temos também a reforma trabalhista, que foi extremamente prejudicial aos trabalhadores", explicou a procuradora.
Ainda segundo Couto, há quatro fatores que caracterizam o trabalho análogo ao escravo. Um deles é a jornada exaustiva, que não considera o número de horas trabalhadas, mas o esforço despendido pelos trabalhadores para cumprirem as tarefas determinadas no número de horas. Há ainda condições degradantes de trabalho, que ocorrem quando a dignidade do funcionário é violada, como ao receber comida estragada e alojamento em péssimas condições.
O trabalho escravo também pode ser definido em situações de servidão por dívida, que ocorre nas ocasiões em que o empregador desconta passagens, alimentação, instrumentos de trabalho, sempre a preços altos, para que o empregador fique preso no local, e ainda o trabalho forçado, quando o funcionário fica impedido de sair, porque teve documentos retidos ou sofre coação física ou moral. Denúncias de situação análoga à escravidão podem ser feitas pelo telefone 180 ou em www.mpt.mp.br. 
"Esses quatro elementos não precisam ser concomitantes, pelo contrário, basta a existência de um deles para ser caracterizado trabalho análogo a escravo (...) O trabalho em troca de comida, em troca de abrigo, não existe, os direitos trabalhistas precisam ser respeitados, é totalmente insconstitucional, é contrário à Lei Trabalhista. Geralmente, a vítima já naturaliza a situação, está necessitada, precisa daquele trabalho, e a exploração já naturalizada na maioria das vezes", ressaltou a coordenadora. 
*Colaborou Marcos Porto