Trem do Choro completa dez anos de música e resistência nos vagões da Central do Brasil
Evento criado a partir das rodas de choro na Praça Ramos Figueira, em Olaria, próximo à região onde Pixinguinha morou, leva cultura e história à população
Instituição Cultural 100% Suburbanos criou o Trem do Choro em 2013 - Cleber Mendes/ Agência O Dia
Instituição Cultural 100% Suburbanos criou o Trem do Choro em 2013Cleber Mendes/ Agência O Dia
Rio - A influência do som de prata do Pixinguinha fez com que Luiz Carlos Nunuka, de 70 anos, em parceria com os seus amigos, criasse uma roda de choro na Praça Ramos Figueira, em Olaria, Zona Norte do Rio, em 2012. Desde então, o evento foi atraindo o olhar dos moradores da região e de amantes do ritmo, fazendo com que Nunuka pensasse em uma alternativa para enaltecer ainda mais aquele tipo de música: o Trem do Choro, criado em 2013. Neste ano, o evento completa uma década de existência e sai da Central do Brasil, da plataforma 13, em direção à Olaria, com vagões repletos de chorões (músicos e cantores) homenageando grandes nomes, como Pixinguinha, Chiquinha Gonzaga, Valdir Azevedo, entre outros.
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Ao chegar em Olaria, o cortejo que vem do Trem do Choro vai em direção a Praça Ramos Figueira, conhecida como o reduto do Pixinguinha, por ele ter morado nas proximidades. "São dez anos nessa batalha, levando o choro para a população. A gente tenta organizar tudo da melhor forma e convidamos sempre músicos de diversos grupos de choro para participar do trem", explicou Nunuka. "Saímos da plataforma 13 e vamos até Olaria com músicos ocupando os vagões que levam o nome de um cantor diferente, alguém que já partiu. Mas a máquina principal é sempre denominada de Pixinguinha".
O Trem do Choro está marcado para sair no dia 23 de abril, domingo, a partir das 8h30 na plataforma 13 da Central do Brasil. A ideia dos organizadores é que o cortejo chegue até 10h na praça para realizarem a roda de choro.
Segundo Nunuka, tudo começou com a criação do Instituto Cultural 100% Suburbano, que tem o objetivo de trabalhar no bairro a ideia da musicalidade. "Temos vários problemas aqui na região, mas também há muita cultura. No entanto, nos jornais, só escutamos falar da parte ruim, da criminalidade, de como é perigoso. Mas, quem morou ou mora em Olaria tem muito orgulho do bairro e da história dele". Ele notou que a busca pela cultura na região era fraca ainda, então, ao fundar o instituto com seus amigos que compartilham da mesma ideia, houve o início das rosas de choro na praça.
"Foi um achado. Até então, as pessoas próximas ali de onde morou Pixinguinha nem sabiam ou conheciam ele. Outras até que já tinham escutado falar, mas nada muito profundo, não a ponto de entender e escutar suas obras. Então aquele entorno passava despercebido por quem é de Olaria. Ao começarmos com a roda, fomos divulgando o choro e chamando convidados ilustres também, como o Zé da Velha, que já tocou com Pixinguinha", declarou.
Zé da Velha foi o primeiro artista a visitar a roda de choro, que acontece no terceiro domingo do mês. A partir disso, ele nunca mais deixou de ir. "Antes, fazíamos o evento no final do mês porque é quando a maioria recebe. Também tínhamos o costume de fazer aos fins de semana, mas agora ficou mais certo aos domingos". Em 2013 percebemos que precisávamos criar um movimento mais forte, que expandisse o choro, que é o gênio da música carioca. Daí a ideia do trem, pois já existia o Trem do Samba na época. Por que não criar um do choro?", disse Nunuka.
Claudio Jorge Soares, 47, jornalista e pesquisador de cultura popular nos subúrbios cariocas, Diretor do Instituto Cultural 100% Suburbano, explicou que o choro vem de uma manifestação musical genuinamente brasileira, de gênero urbano e que nasceu na pequena África, fruto da hibridização das culturas africanas e europeia. "Com todo o processo de ocupação urbana do Centro do Rio, provocado também pelo modelo ideal de desenvolvimento arquitetônico que copiava Paris, a população negra acabou sendo empurrada para os subúrbios e, obviamente, o choro e o samba acompanharam esse êxodo. A partir daí, surge todo o processo de ocupação dos bairros operários, perto das ferrovias e encostas, como morros, originando as favelas".
O choro, segundo Cláudio, transformou-se em um instrumento de resistência da cultura popular, assim como o samba. "Além do território carioca, esse gênero musical está presente em todo o estado brasileiro, como Amazonas, Pará e Minas Gerais, por exemplo. A região da Leopoldina, em Olaria, onde a roda de choro começou, é uma região que herdou a tradição desse ritmo por conta do longo período que Pixinguinha residiu em Ramos. A casa onde ele morou na fase adulta permanece lá até hoje".
Ele contou que a tradição do choro é simbolizada pela junção de culturas e pelo fato de um território ter sediado durante muito tempo essas manifestações, como a tradicional festa da Igreja da Penha, que tinham dois lados: as missas realizadas para a nobreza e a capoeira, os quitutes das africanas, e a música. "Essa cultura do choro está intimamente relacionada à forma como a população negra se manifesta. Esse ritmo é considerado um dos mais difíceis pelos músicos, tem muito a ver com o jazz. O lamento negro americano como forma de improvisação".
O percussionista e diretor do Sindicato dos Músicos do Estado do Rio (SindMusi), Teo Cordeiro, conheceu o choro quando era aluno da Escola Portátil de Música, em 2005, e se apaixonou. Ele tem um grupo chamado Movimento Leopoldina Orgânica, que é um dos parceiros da Instituição Cultural 100% Suburbana. Juntos, eles fazem eventos culturais pela região. "Eu sou percussionista há 20 anos e morei algum tempo na Leopoldina.
Quando conhecemos o grupo 100% Suburbanos, viramos amigos. A gente toca na roda deles, eles vêm nos visitar na nossa Feira Orgânica em Olaria, é uma troca. Participo do Trem do Choro desde a sua criação também e estou dirigindo um documentário sobre no tema".
Para Teo, a importância do choro para a cultura carioca e brasileira é fundamental. "Ele é a primeira linguagem urbana, acredito que fruto de uma fusão mesmo. Esse estilo musical é uma grande base para a construção da música brasileira. As rodas são verdadeiras expressões da cultura popular urbana, promovendo encontros da comunidade, da população, que estão ali reverenciando a linguagem musical da sua história e dos seus ancestrais. Mesmo o choro não sendo cantado, ele produz um diálogo entre os músicos e o público".
O musicista Abel Luiz, que toca no Trem do Choro, acredita que toda iniciativa que mobilize o entorno do que é potente para a cidade é valorosa. "Esse é o caso do choro. Além de pontuar uma manifestação cultural, sonora, musical, que é de grande importância para o Brasil, é algo que contribui também para a gente desfazer essa semiótica da cidade no sentido de que o Rio é uma cidade muito complexa e diversa e que. tem coisas maravilhosas para aprender além das imagens de cartão postal".
Ele ainda afirmou que manifestações como samba, choro e capoeira, que são ligadas ao subúrbio do Rio, colocam pontos 'luminosos' sobre as contribuições da Zona Leopoldina e dos artistas. "O Trem do Choro é necessário para destacar importantes culturas e histórias envolvendo a nossa sociedade".
Decreto
A Prefeitura do Rio declarou, em maio de 2012, o gênero musical denominado choro como Patrimônio Cultural Carioca, através do decreto de número 35.550. O documento considera a relevância do ritmo como uma das primeiras manifestações musicais carioca, o legado musical dos artistas que produziram canções, entre outros. "Ano passado rememoramos o decreto que completou 10 anos. O choro antecede o samba, inclusive, muito do samba foi herdado da raiz do choro. O flautista Calado, por exemplo, Chiquinha Gonzaga e Dona Ivone Lara, são nomes fundamentais desse ritmo no Brasil, muito antes do samba. Esses dois estilos musicais coexistem e pegando um gancho ainda nessa década de tombamento, temos o Trem do Choro que vai para a sua 10ª edição, contando a história da nossa cultura", explicou o historiador Rafael Mattoso.
Registro de bem imaterial pelo Iphan em processo
O Choro ou Chorinho é considerado o primeiro gênero musical popular urbano do Brasil. De acordo com o Clube do Choro de Brasília, que fez o pedido de registro do bem em 2012, o ritmo teria se desenvolvido no século XIX a partir da fusão entre elementos eruditos e populares no Rio de Janeiro, então capital do Império do Brasil. Nesse contexto, o ritmo se tornou fator de construção da identidade cultural brasileira.
O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) informou que, em 2019, por meio de edital de chamamento público, a Associação Cultural Amigos Museu Folclore Edison Carneiro (Acamufec) foi selecionada para conduzir a pesquisa e documentação no âmbito da instrução técnica do processo de registro do Choro como Patrimônio Cultural do Brasil, título conferido pelo órgão.
Ainda segundo o Iphan, o processo de registro desse bem imaterial está nos trâmites finais para ser encaminhado ao Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural, que é responsável pela decisão sobre o registro.
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