População faz vigília em creche em Blumenau, Santa Catarina, onde quatro crianças foram mortas por um jovem de 25 anos Anderson Coelho / AFP

Rio - A iniciativa de algumas empresas de mídia, como O DIA e o MEIA HORA, em não mais mostrar nome e foto de autores de episódios de massacre é uma das medidas que busca conter o chamado 'efeito contágio', quando a publicidade dada a essas pessoas, mesmo pelo viés negativo, acaba por incentivar outros casos. Mas que mecanismo subjetivo é este? E, mais ainda: o que está acontecendo em nossa sociedade para que esses casos se repitam, como vimos nas últimas semana? Especialistas em análises do comportamento humano traçam uma série de fatores que se intensificaram recentemente, como a banalização da violência, a solidão e até mesmo uma ação orquestrada de grupos fascistas na internet.

Os estudiosos do tema consultados pelo DIA levantam aspectos que estão, inclusive, relacionados à pandemia. Para Cláudia Henschel, professora da cadeira de Psicopatologia da UFF Volta Redonda, o período de isolamento social e fechamento de escolas contribuiu para o fortalecimento de processos psicológicos que se alimentam da solidão, como baixa autoestima, ideias persecutórias e comportamento narcisista, que, como explica, está relacionado a uma mania de grandeza.

"É como se a pessoa imaginasse que nasceu para realizar alguma missão, com uma moral e um senso de justiça muito individualizados. E, nesse contexto, temos sido expostos a discursos que atacam o ambiente escolar, que colocam o professor como um ideólogo de gênero que vai desvirtuar a sexualidade das crianças, que são comunistas, e por aí vai... A escola, então, pode ser um alvo para o extravasamento desse tipo de comportamento", diz Cláudia, reforçando que a escola é uma das instâncias sociais, como a cultura e a saúde, que estão sendo denegridas por discursos de ódio, especialmente pelas redes sociais:

"O governo precisa monitorar, rastrear e regular as redes sociais. É onde as pessoas estão se conectando em torno de conteúdos misóginos, racistas e de supremacia branca".

Professor do Instituto de Psicologia da USP, Paulo César Endo chama atenção para o fato de os autores das mortes na Escola Thomazia Montoro, em São Paulo, e na creche Cantinho Bom Pastor, em Blumenau, que têm 13 e 25 anos respectivamente, estarem em fase de formação de personalidade em um momento em que a violência vem sendo legitimada no país.

"Essas pessoas foram formadas em um caldo de cultura governamental com incitação rotineira do ódio, da vingança, do ataque violento às diferenças. Um país em que a violência foi insuflada como um dispositivo que substituiu a política de segurança pública. O que passamos a ter foi a ideia de 'compre uma arma e se defenda'. A violência foi legitimada como um dispositivo utilizável diante de qualquer frustração ou conflito", diz Paulo César.
Nesse contexto, destaca Paulo César, eliminar o caráter de espetáculo na cobertura de episódios de massacre é uma providência básica que os meios de comunicação devem assumir: 
"É, sim, um caminho para evitar que novos casos aconteçam. É preciso abafar, ao noticiar os casos, qualquer elemento que confira um caráter espetacular ao fato, que dê protagonismo a quem comete esses crimes". 
O professor também relaciona um efeito ligado à pandemia. Segundo ele, não houve condições para que a sociedade elaborasse o luto das mais de 700 mil mortes por covid-19 no país, o que, como explica, produz a exacerbação de sentimentos como ódio, raiva e vingança como resultado:
"O processo de elaboração da perda é fundamental para o amadurecimento psíquico. As condições para isso passam pela aceitação da morte a partir da percepção de que tudo que poderia ter sido feito para evitá-la foi feito. O que vimos na pandemia foi o contrário. Não tivemos vacina no tempo que poderíamos ter tido. As pessoas não tiveram condições de ter um enterro digno. Isso amplifica um sentimento de injustiça. A resposta psíquica muitas vezes aparece em sentimentos reativos, como o ódio, a raiva e a vingança".  
Supervalorização do perfil violento
Doutora em Psicologia e professora da faculdade de Educação da Unicamp, Ângela Soligo explica que a escola reflete os problemas da sociedade, como machismo, racismo e violência contra a mulher: 
"Quando essas questões não são enfrentadas pela sociedade, as escolas acabam sendo um dos espaços em que elas são reproduzidas. Os massacres são eventos extremos. Mas temos também o que podemos chamar de micro violências, que acontecem todas as semanas no ambiente escolar, como os abusos, humilhações e assédios de todo tipo". 
Em relação à exposição midiática, Ângela chama atenção para um tipo de programação em voga que contribui para glamurizar a violência.

"Temos diversas séries em streamings que estão supervalorizando pessoas reais de perfil violento, trazendo holofotes a elas. As novelas também fazem isso com os vilões. Temos, inclusive, um canal de TV fechada que tem um programa chamado 'As vilãs que amamos'. Tudo isso atrai as pessoas que estão suscetíveis e as levam a extremos".

Ângela destaca que elas podem ainda ser cooptadas por ações orquestradas de grupos que classifica como fascistas e terroristas, e que agem principalmente na internet.

"Isso encontra terreno fértil na nossa cultura atual que valoriza demais a imagem, a notoriedade e o sucesso a qualquer preço. Há grupos terroristas se aproveitando disso e cooptando pessoas ao expor conteúdos na internet sobre como produzir bombas, por exemplo. E as escolas acabam sendo alvo desses grupos, pois são espaços de reflexão, de conhecimento, de pensamento crítico. Justamente o oposto do que pregam".