Na vida, no entanto, os vendavais não vêm com previsões de chegada. Surgem varrendo tudo, levando folhas e galhos pelo caminho. A gente se molha, inevitavelmenteArte: Kiko

A chuvarada havia caído no fim de uma noite de inverno. No quintal, dava para ver as gotículas que restavam no varal, talvez ressaltadas pela luz do poste da rua. É curioso que, quando o céu anuncia uma virada no tempo, a gente logo pensa em tirar as roupas da corda. Na vida, no entanto, os vendavais não vêm com previsões de chegada. Surgem varrendo tudo, levando folhas e galhos pelo caminho. A gente se molha, inevitavelmente. Enquanto eu admirava esse anoitecer, outras gotas teimavam em cair dos parapeitos, fazendo aquele barulhinho da água que insiste em não ir embora.
Em uma área coberta, eu também persistia. Mas a minha teimosia consistia na tentativa de pintar. De forma bem amadora, é verdade. Diante de um papel, encarei a lição de reproduzir objetos de um cenário e, depois, pintá-los com tinta gauche, prestando atenção às nuances e às sombras de cada tom. Descobri um dia desses, aliás, que o meu lado desenhista foi interrompido ainda no primário da escola e, de lá para cá, fiquei com a lembrança de traçar apenas uma casinha, uma árvore com frutos, um gramado, nuvens e um sol. Tudo de forma bem básica. As pessoas, para mim, sempre foram feitas de tracinhos.
Naquele anoitecer de inverno chuvoso, eu me vi diante da chance de conhecer algo novo. É curioso como a vida sempre nos coloca nesse papel de aprendizes, por mais que os anos passem. Em todos esses cenários, tenho o desafio de domar a minha ansiedade. Ali, diante de um papel, tintas e pincéis, também foi assim. Percebi o quanto é difícil a missão de me exercitar em um universo diferente do meu. Em certos momentos, dá até vontade de embaralhar tudo e acabar com a brincadeira. Mas aí a gente se lembra que cresceu e que a vida nos ensinou que não é assim que se faz.
Pensar na dificuldade de um traço, na escolha de uma cor, de um sombreado ou de uma textura só me fez reverenciar ainda mais os artistas. É preciso ter a leveza para bailar com o pincel pela tela, uma habilidade que também me falta. Dizem que, se eu treinar, posso melhorar. O fato é que sofri para reproduzir figuras concretas e resolvi, então, fugir para o que me parecia mais confortável — na vida, também costumamos fazer isso.
Assim, apelei para algo que só existia na minha memória. Segui na minha teimosia — e os pingos de chuva também. Diante de uma tela, desenhei vários sóis, de cores e tamanhos diversos, com raios nada padronizados. Afinal, nenhum dia amanhece igual ao outro. Batizei a obra de 'Coleção de sóis', contrastando com o cenário chuvoso do quintal. E confirmei que o tempo também depende do que sentimos. É possível ter belos e vagarosos momentos de chuva com o coração ensolarado de poesia.