Exposição conta a história do conjunto de favelas da MaréAcervo Anthony Leeds/COC Fiocruz

Rio - Morro do Timbau, Baixa do Sapateiro, Parque União, Nova Holanda, Praia de Ramos, Vila do João, Salsa e Merengue.... Todas fazem parte das 16 comunidades que formam o Complexo da Maré, na Zona Norte do Rio. A região, que recentemente é alvo de operações das forças de segurança contra facções, recebe ao mesmo tempo uma exposição virtual que mostra sua outra faceta: construída por pessoas, lutas e resistência. A 'Rio de Marés', aberta para visitação virtual, leva as pessoas a navegar pela origem, diversas culturas e batalha dos moradores por direitos no território ao longo das décadas.
A galeria do Rio de Memórias tem curadoria do pesquisador Mário Brum e mergulha na historicidade do complexo, sob dois aspectos principais: a construção do território e a identidade dos moradores. As histórias retomam as primeiras ocupações da região, desde as primeiras palafitas até a sua configuração atual, contadas por meio de imagens, documentos, mapas, textos e depoimentos.

A mostra está dividida em cinco núcleos: migração, as Marés de Antes, educação, gênero, meio ambiente e saúde. Segundo o historiador, foram três meses de pesquisa e elaboração do projeto, com a intenção de apresentar a Maré, como parte integrante da cidade, destacando o papel fundamental dos moradores na construção das favelas.

"A exposição quis mostrar tanto essa ideia da diversidade, da riqueza, quanto a construção do espaço que se liga à construção da cidade e a construção dessas pessoas, como moradores e pessoas portadores de direitos. Nada ali foi de graça, tudo foi fruto de muita luta e ao fazer essa luta, foram se constituindo como moradores da Maré", ressalta Mario Brum, pesquisador e professor de história da Uerj.

História
A Maré passou por diversas transformações ao longo do tempo, ainda de acordo com Brum. O território foi reconhecido oficialmente em 1994, antes disso era um local formado por aldeias de pescadores que viviam em palafitas e grande parte era a Praia de Maria Angu e de Inhaúma. No entanto, a partir de 1950, com a abertura da Avenida Brasil, surgiram os barracos e foi quando começou a ter a feição de favela, conhecidas como 'a favela da Maré' ou 'favelinha de Bonsucesso'.

O curador ressalta que as pessoas da região não sabiam localizar muito bem o que era Maré e o que era Bonsucesso, antes de ser reconhecida como uma parte oficial da cidade, então não havia preocupação em determinar a divisão entre essas áreas.

"Então esse bairro foi construído pelos moradores de diversas formas, nas casas e nas ruas, eles foram aterrando para ganhar mais terreno frente ao mar, construíram postos de saúde, escolas e são pessoas que construíram a cidade também. Assim como se construíram como moradores da Maré. Essa ação é simbólica por uma identidade que se formou através da luta pelo direito de estar naquele espaço, direito à educação, à saúde e à segurança", defende Mário.
Persistência e resistência
O professor ainda reforça que a Maré é um território muito rico e que, apesar de ser frequentemente associado à criminalidade, é um local que produz muito conhecimento.
"Foi a Maré que teve a primeira casa de atendimento LGBT+ em uma favela, também há um protagonismo feminino muito forte desde a Chapa Rosa da Associação da Nova Holanda, a Marielle Franco, a diversas mulheres como a Dona Orosina, que é considerada uma das primeiras moradoras da região, também um dos primeiros pré-vestibulares dentro de favela. Na pandemia, a Maré teve um dos índices de vacinação mais altos do Rio, com cerca de 93% de moradores vacinados, graças ao esforço das ações de lideranças comunitárias da região", diz Brum.
Desde o último dia 9 deste mês, o território tem sido alvo de uma operação policial com agentes das forças estaduais de segurança e apoio da Força Nacional, em combate ao avanço do Comando Vermelho (CV), facção criminosa que domina a região. A ação é uma resposta, a partir de uma investigação da Polícia Civil que encontrou, com o auxílio de drones, imagens de criminosos armados treinando táticas de guerrilha dentro de um centro de lazer.
No entanto, Mario Brum defende que a cidade deveria olhar para territórios como a Maré e outras comunidades, como um território que merece receber mais atenção e políticas públicas e a partir disso, muitos dos problemas, inclusive como a segurança pública, serão resolvidos.
Ainda de acordo com ele, os moradores da Maré recebem pouco em troca dos esforços feitos em prol da construção e sendo parte fundamental da vida da cidade. Além disso, Brum ressalta que existe um passivo ambiental enorme em vários sentidos.
"Porque a Maré é cercada por três grandes vias expressas da cidade, e existe ali uma usina de tratamento de lixo, uma estação de esgoto e até pouco tempo atrás uma refinaria, então, você tem uma carga de poluição e danos ambientais em um território enorme", explica o especialista.
"A Maré é um território muito a vista porque está na Avenida Brasil, na Linha Vermelha e na Linha Amarela, então as pessoas passam por ali, mas, ao mesmo tempo, é muito pouco conhecido, porque por ser um lugar de passagem também é muito estigmatizado como um lugar de perigo, e, na verdade, a gente até mostra que é um lugar de vida, de gente boa e de gente ruim, de problemas e coisas bacanas, de empreendedorismo e saberes", completa o pesquisador.
Faces da Maré
A persistência é uma das características da identidade de quem é cria da Maré, como Leonardo Bruno, de 31 anos, dono da barbearia Buddies Barbershop, em Ramos, na Zona Norte.
Desde a juventude, ele começou a trabalhar fazendo vários serviços, como ajudante de pedreiro até atuar como soldador de uma metalúrgica. Após ficar desempregado, começou a aprender a cortar cabelo assistindo vídeos na internet e com um espelho, uma máquina emprestada pelo irmão e três gavetas, ele começou a realizar os primeiros cortes de graça no corredor da casa da mãe para poder colocar a mão na massa e praticar.
Leonardo Bruno, dono de uma barbearia no Complexo da Maré, na Zona Norte - Divulgação
Leonardo Bruno, dono de uma barbearia no Complexo da Maré, na Zona NorteDivulgação


Com a procura de pessoas pelo corte, ele começou a cobrar um valor no serviço para poder investir no próprio equipamento e buscar especialização. Em pouco tempo, ele deu mais um passo na carreira e se candidatou para uma vaga em uma barbearia de referência no Parque União, também na Maré, e lá conquistou com ousadia uma oportunidade como barbeiro e foi se aprimorando nos cortes e ganhando cada vez mais clientes. Até que inquieto, começou a sonhar em ter o seu próprio negócio, mas não tinha dinheiro para começar e investir.
Foi então que Leonardo começou a obra em um quarto, em cima da casa da mãe, e lá deu início com suas próprias mãos a empreitada de um novo sonho: empreender. Ele trabalhava na construção nas folgas e nos horários vagos, já na parte da tarde retornava ao emprego na barbearia, seguiu assim por meses até poder se dedicar totalmente à obra. A partir de então, ele retornou ao corredor da mãe, começou a fidelizar clientes, e passo a passo o espaço ganhava forma e o sonho ia virando realidade.
Há pouco mais de um ano, ele deu um novo passo no empreendimento, mudou para o endereço localizado no Piscinão de Ramos, contratou mais colaboradores e adotou um novo modelo de negócio: o plano de assinatura mensal que oferece cortes de cabelo quantas vezes o cliente quiser e outros serviços.
Atualmente, o estabelecimento é um sucesso na Zona Norte, e já conta com seis funcionários que também são da Maré. Já os clientes vão desde moradores da região até de bairros vizinhos. Leonardo agora se dedica à expansão da empresa, a melhorar o serviço e pretende futuramente ter mais colaboradores e até outras unidades.