‘Quem tem fome, tem pressa’. A frase dita pelo sociólogo Hebert de Souza, o Betinho, é mais atual do que nunca, principalmente para os quase nove milhões de brasileiros que não têm comida no prato. De acordo com Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PnadC) do IBGE, realizada em abril deste ano, são 64 milhões de brasileiros em algum grau de insegurança alimentar, o que corresponde a 27,6% dos lares no país e 8,6 milhões, incluindo crianças, em insegurança alimentar grave, ou seja, a fome mesmo, atingindo a 4,1% de residências.
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Segundo a pesquisa, insegurança alimentar acontece em 59,4% dos domicílios chefiados por mulheres. A fome moderada, que é quando a pessoa adulta deixa de se alimentar em quantidade ou qualidade, prevalece nesses lares. Entre os domicílios onde há algum grau de insegurança alimentar, a maioria é chefiada por pessoas pardas (54,5%), seguidos por brancas (29%) e pretas (15,2%).
Quando a insegurança alimentar chega ao nível mais grave, que é a fome, a participação de domicílios com pessoa responsável de cor ou raça parda passa para 58,1%, mais do que o dobro da parcela que representa os domicílios cujos responsáveis eram de cor ou raça branca (23,4%).No Estado do Rio de Janeiro, segundo a pesquisa, 4,484 milhões de pessoas estavam em situação de insegurança alimentar sendo dessas, 500 mil em situação de fome. A falta de condições de acesso das famílias em vulnerabilidade alimentar, especialmente pela baixa renda, é um dos principais fatores da Insegurança Alimentar e Nutricional (InSAN).
O IBGE, responsável pelo levantamento, classifica a insegurança alimentar em três níveis:
Insegurança alimentar leve: falta de qualidade nos alimentos e uma certa preocupação ou incerteza quanto ao acesso aos alimentos no futuro.
Insegurança alimentar moderada: falta de qualidade e uma redução na quantidade de alimentos entre os adultos.
Insegurança alimentar grave: falta de qualidade e redução na quantidade de alimentos também entre as crianças. Nessa situação, a fome passa a ser uma experiência vivida no lar.
Em 2022, o Brasil voltou para o Mapa da Fome, mas a edição de 2024 do Relatório da Organização das Nações Unidas sobre o estado da Insegurança Alimentar Mundial revela queda de 85% na insegurança alimentar severa no país. De acordo com Wellington Dias, Ministro do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome do Brasil, o governo está fazendo o possível para que o país saia do Mapa da Fome. Foi lançado o Plano Brasil sem Fome e utilizados U$ 70 bilhões para que o resultado seja alcançado. Em entrevista à Rádio Senado, o ministro afirmou: "Acabar com a fome é a principal bandeira do nosso governo. Isso mostra a importância do relatório para nós e o enorme significado deste momento para mim especialmente."
De acordo com o relatório produzido por agências da ONU, o país poderá sair do Mapa da Fome nos próximos anos. No entanto, os dados globais continuam altos: em 2023 a redução do índice foi de apenas 0,28% em relação ao ano anterior. África continua a ser a região com a maior proporção da população que enfrenta a fome: 20,4%. Na Ásia, o índice é de 8,1%, na América Latina e Caribe, 6,2% e, na Oceânia, 7,3%.
O Plano Brasil Sem Fome
São 80 ações e programas, com mais de 100 metas propostas pelos 24 Ministérios que compõem a Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional – CAISAN, organizadas em 3 eixos:
1.Acesso à renda, redução da pobreza e promoção da cidadania;
2.Alimentação adequada e saudável, da produção ao consumo;
3.Mobilização para o combate à Fome.
Metas
•Tirar o Brasil do Mapa da Fome até 2030; •Reduzir, ano a ano, as taxas totais de pobreza; •Reduzir a insegurança alimentar e nutricional, especialmente a insegurança alimentar grave. •Estratégias principais •Aumento da renda disponível das famílias para comprar alimentos; •Mapeamento e identificação de pessoas em insegurança alimentar para inclusão em políticas de proteção social e acesso à alimentação; •Mobilização dos governos, dos poderes públicos e da sociedade civil para integrar esforços e iniciativas de combate à fome.
Fome de tudo
O Instituto Fome de Tudo, liderado pela atriz Úrsula Corona, desenvolveu um aplicativo que junta empresas com excedente de alimentos a instituições que atendem pessoas em situação de insegurança alimentar. Em agosto, a atriz - CEO da organização que tem a chancela do Programa Mundial de Alimentos (da sigla em inglês WFP, World Food Programme) das Nações Unidas (ONU), esteve com o ministro Wellington Dias para disponibilizar a utilização em escala nacional, do aplicativo desenvolvido pelo Fome de Tudo. Apelidado de Tinder da Fome, a plataforma junta empresas com excedente de alimentos a instituições que atendem pessoas em situação de insegurança alimentar, assim diminuindo, ao mesmo tempo, o desperdício e a fome. O aplicativo já está em utilização no Rio de Janeiro, Pernambuco, São Paulo e Alagoas.
Úrsula conta como funciona o Fome de Tudo. "Atuamos com toda a indústria alimentar entre produtores, agricultura familiar, distribuidores de alimentos, como supermercados, banco de alimentos, cozinhas solidárias, fazendo a governança de todo o processo. A nossa tecnologia trabalha de forma cirúrgica contra o desperdício e o impacto é enorme em todo o sistema. O foco é zerar o desperdício, cortar prejuízos além de impactar quem realmente precisa de forma inteligente sem assistencialismo e com empoderamento econômico. A plataforma gera dados que ajudam a entender de forma personalizada cada parte do nosso sistema . Sem contar que ainda reduzimos a emissão de gases tóxicos".
Para a atriz, está faltando que as pessoas se coloquem no lugar do outro. "É tanta prioridade e dedicação de tempo. Tive uma vida mista com a parte de pai rica e a mãe pobre assim como o Brasil, de um lado muita escassez e de outro muito privilégio. Acho que todos querem decência uma vida digna, com moradia, saúde e comida", conta a atriz Úrsula Corona, que desde pequena aprendeu o valor da empatia. 'Hoje ninguém está nem aí para o outro. Lembro de bem pequena meu pai me levar para dar comida para moradores de rua na Rodoviária Novo Rio. Comecei a trabalhar na televisão aos 8 anos. Comecei a ganhar dinheiro cedo. Minha avó paterna era muito preconceituosa e não aceitava a minha mãe", lembra Úrsula, que é filha única do jornalista Alberto Corona e de Diva Corona.
Úrsula sempre teve preocupação com a causa social e por isso fundou a Fome de Tudo, que tem várias ramificações como saúde, educação, esperança. "A indústria alimentar tem prejuízo de um US$ 1 trilhão, do produtor ao consumidor. São 700 milhões de pessoas passando fome no mundo. Com o aplicativo sabemos de ponta a ponta a entrega e onde o estoque de algum alimento está encalhado para poder ser doado", explica Úrsula que acaba de apresentar na Bandnews o podcast Vida de Merendeira.
Com sede em São Paulo e com “filiais’ em outros lugares, inclusive Moçambique, o Instituto da Fome trabalha em cinco verticais: Proteção Social, Capacitação e educação, Empreendedorismo social com foco na economia, Saúde, e Tecnologia e inovação. "Na Saúde, estamos fazendo um projeto piloto em Volta Redonda para que o diagnóstico de exames saia em 15 minutos. Assim o tratamento terá mais rapidez. Temos muita capacidade para avançar na saúde".
União de forças
Coordenador da Coordenadoria de Segurança Alimentar da Prefeitura do Rio de Janeiro, Igor Barcellos, explica que é realizado acompanhamento alimentar de 25 abrigos com 1500 abrigados em todo o município. De acordo com Igor, são cerca de 12 mil refeições para atender a esses moradores e sempre existe o cuidado com a alimentação porque muitos têm hipertensão, diabetes e outras doenças.
Ele conta que é fundamental a união de forças para que todo brasileiro volte a ter comida de qualidade no prato. "É um erro achar que a solução para o combate à fome aconteça só por meio dos órgãos públicos. Precisamos de uma rede, de parcerias com o terceiro setor para que possamos melhorar a situação".
Uma delas é o Banco de Alimentos da Comlurb em parceria com o supermercado Zona Sul. As pessoas que vivem em situação de vulnerabilidade ou de pobreza extrema podem se cadastrar no Cras (Centro de Referência e Assistência Social) para receber o alimento. “Muitas vezes o alimento não tem padrão para venda, mas tem para o consumo. São 350 famílias atendidas no Caju". De acordo com Barcellos, o importante é não cessar o trabalho. "Estamos dando continuidade à Estratégia Nacional de Segurança Alimentar com ações como Cozinhas Solidárias, Agricultura Familiar".
'Combate de forma estrutural'
Em entrevista ao jornal O DIA, Ana Paula Souza, de 54 anos, gerente de Advocacy (termo utilizado para ações de incidência política) da Ação da Cidadania, fala um pouco sobre o assunto.
O DIA: O Brasil havia saído do Mapa da Fome em 2014, mas voltou e permaneceu até 2022. O Brasil chegou a ter 33 milhões de pessoas passando fome, mas esse número diminuiu. O que você acha que aconteceu e como a sociedade pode fazer para que menos brasileiros não tenham o que comer?
ANA PAULA SOUZA: Exatamente, em 2014 o Brasil saiu do Mapa da Fome por conta de um conjunto de investimentos e esforços nesta direção. Foi colocado como prioridade em 2003 com o programa Fome Zero. Entre os fatores tivemos a valorização do salário-mínimo, o incremento no Programa Nacional de Alimentação Escolar PNAE, o Programa um milhão de cisternas no semiárido, o Programa de Aquisição de Alimentos, criação de Restaurantes Populares e Bancos de Alimentos, o Programa Bolsa Família entre outros. Em 2017 foi aprovada a PEC dos gastos, congelando os investimentos nas áreas sociais, atingindo os três sistemas mais importantes de proteção às pessoas em vulnerabilidade social, o SUS, o SUAS e o menos conhecido SISAN (Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional).
Em 2017 a Ação da Cidadania, por uma demanda das lideranças comunitárias que coordenam comitês locais, voltou a realizar, de forma nacional, as campanhas de arrecadação de alimentos, após 10 anos sem a prática dessa ação. A fome estava de volta assombrando as casas de milhares de famílias, e já tivemos essa constatação antes de saírem os dados.
Os últimos dados mostram que a fome reduziu de 33 milhões para menos de 9 milhões. Em 2023 o combate à fome voltou a ser prioridade no país, o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional foi reativado, onde a atuação da sociedade civil se dá com muita incidência sobre as políticas públicas de combate à fome de forma estrutural e não somente de forma emergencial.
A participação social está sendo extremamente importante nesse processo de retomada das políticas públicas onde conseguimos o reajuste do valor destinado a merenda escolar PNAE, que ficou congelado por cinco anos, estamos retomando e expandindo as cozinhas comunitárias, o programa de aquisição de alimentos, os Bancos de Alimentos, o investimento nos pequenos agricultores e outras. As ações emergenciais ainda são essenciais, Betinho dizia que Quem tem fome tem pressa e as campanhas de arrecadação de alimentos fazem o alimento chegar mais rápido a quem necessita. É importante que as pessoas busquem e se aproximem das organizações sociais, associações de moradores, instituições religiosas e fortaleçam essas campanhas.
O DIA: Sabemos que a pandemia contribuiu muito para a miséria em nosso país. São muitos moradores de rua e muita gente sem ter uma alimentação adequada.A quê mais você atribui essa situação?
ANA PAULA SOUZA: Com a pandemia a situação piorou, encontrando uma sociedade já com seus sistemas socioassistenciais extremamente fragilizados devido aos cortes de gastos a partir de 2017.
O DIA:A população em situação de rua é muito alta e ainda temos muitas famílias em situação de insegurança alimentar, sem acesso a uma alimentação adequada. Dados globais da fome continuam altos. Por que de uma forma geral não se consegue retomar os trilhos do combate à fome e à pobreza?
ANA PAULA SOUZA: De forma geral a desigualdade social produzindo concentração de riqueza e renda não favorece a geração de empregos e o acesso das populações mais vulneráveis aos bens e serviços necessários para uma vida digna. Os sistemas alimentares, por exemplo, produtores de comodities não geram empregos e ainda produzem o êxodo das áreas rurais para as áreas urbanas onde famílias se concentram em bolsões de pobreza. Além do grande desperdício de alimentos por não termos políticas públicas que regulamentem de forma eficaz esse problema. Existem modelos eficazes de produção de alimentos que precisam ser priorizados imediatamente, onde o foco está nos pequenos produtores. Deve-se investir no fomento à agricultura familiar, que produz os alimentos consumidos no país, gera empregos e reduz os chamados desertos alimentares.
O DIA: Muito se fala em segurança alimentar, mas como podemos defini-la para que as pessoas consigam entender?
ANA PAULA SOUZA: Uma pessoa está em situação de segurança alimentar quando consegue comer diariamente em quantidade e qualidade os nutrientes necessários para o desenvolvimento de suas atividades. Isso quer dizer que necessitamos consumir proteínas, verduras, frutas e legumes. Todas as pessoas precisam ter acesso a esses alimentos e isso é um direito humano constitucional.
Quando uma família já começa a substituir alimentos saudáveis por outros menos nutritivos por conta dos recursos, já com a preocupação ou incerteza quanto ao acesso dos alimentos, pouca variedade para tentar manter a quantidade mínima de refeições, se enquadra na situação de insegurança alimentar leve. Quando reduz a quantidade de refeições e às vezes os adultos deixando de se alimentar para garantir a refeição das crianças, a família se encontra em situação de insegurança alimentar moderada. E quando essa família já não consegue manter a quantidade de refeições necessárias inclusive para as crianças, a situação é de insegurança alimentar grave.
O DIA: Normalmente, o perfil da pessoa que passa fome no Rio acompanha as desigualdades nacionais: As famílias que têm insegurança alimentar grave têm a chefia feminina, é preta ou parda, com menor escolaridade com fundamental incompleto, desempregado e famílias de menor renda, inferior a um quarto do salário mínimo per capita, o que pode ser feito para mudar esse quadro?
ANA PAULA SOUZA: Vivemos os efeitos do racismo estrutural, que não garante as mesmas oportunidades e exclui uma grande parcela da sociedade do acesso a uma educação de qualidade, alimentação adequada, saúde, lazer, cultura, moradia digna, enfim, ainda não temos garantido o acesso de todos os cidadãos aos direitos mínimos. O investimento em educação pública de qualidade é um passo necessário, além de políticas públicas de geração de emprego e renda voltadas para essas mulheres. Os programas de distribuição de renda e de moradia são extremamente necessários e investimento em creches de qualidade.
O DIA: A atriz Úrsula Corona desenvolveu um aplicativo que junta empresas com excedente de alimentos a instituições que atendem pessoas em situação de insegurança alimentar, o que você acha dessa iniciativa?
ANA PAULA SOUZA: Ainda não conheço a iniciativa, mas acho muito importante. Que tenhamos muitas iniciativas nesse sentido. Precisamos fazer parte da solução da fome, não podemos ser meros espectadores e somente acompanhar dados numéricos. Esses números são pessoas, são crianças, idosos, mulheres grávidas, pessoas com saúde fragilizada que precisam de alimentação e alimentação saudável.
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