Reza um antigo ditado que se não somos amigos também não temos amigos, mas será que é bem assim? Qual a importância da amizade na vida das pessoas? É possível passar uma vida inteira sem esses laços? Em tempos de tanta polarização no mundo todo parece que a amizade perdeu o valor que tinha no passado e as pessoas estão cada vez mais sozinhas apesar de tanta rede social. Recentemente, um artigo na Harvard Business Review analisa como a "recessão das amizades", ou a tendência de declínio de amizades significativas, que está lentamente se enraizando em nossas vidas.
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De acordo com a Pesquisa American Perspectives, o número de adultos americanos que afirma não ter "nenhum amigo próximo" quadruplicou desde 1990, chegando a 12%. Enquanto isso, o número de pessoas com "dez ou mais amigos próximos" diminuiu em um terço. Uma tendência semelhante está surgindo em áreas urbanas da Índia: enquanto o número de conhecidos aumenta, as amizades profundas estão se tornando cada vez mais raras.
No Brasil, principalmente por conta da polarização política dos últimos anos quem era amigo deixou de ser e os que ainda mantém os seus estão sempre de pé atrás. Não se tem regra para encontrar um amigo mas nos Estados Unidos a coisa anda tão preocupante que a Universidade Stanford até lançou um curso chamado "Design para Amizades Saudáveis", que destaca que formar e manter amizades agora exige aprendizado e esforço. Se isso vai dar resultado para que mais pessoas consigam ter amigos na terra de Trump, ainda não se sabe, mas, no Rio de Janeiro, o jornal O DIA colheu alguns depoimentos de profissionais das mais variadas áreas sobre a amizade, ou a decadência dela.
Celina Macrini – professora aposentada
"Tenho 58 anos e trago comigo amizades desde o Segundo Grau. Acredito que alguns fatores podem influenciar na dispersão do convívio como a mudança de estado civil, troca de emprego e até o nascimento de filhos e netos, mas penso que tem mais sobre o temperamento da pessoa do que fatores externos. Atualmente com o extremismo político que vem dividindo o Brasil, vejo sim que há uma certa dificuldade em manter amizades. Eu por exemplo lamento ter rompido laços (até familiares), mas não poderia manter amizades que entendi não estarem tendo ao menos pontos de vista comuns com os meus.
Atualmente os pet's tem tomado uma fatia generosa desta categoria de amigo, por conta inclusive da falta de empatia e compreensão com as divergências de opinião. Mas nada substitui a acolhida de um amigo. Ao me separar após 23 anos de casada foram minhas amizades que me sustentaram emocionalmente durante os primeiros meses. Somos seres sociais e ter amigos é uma necessidade básica do ser humano. Eu reafirmo uma máxima que diz: ...podem me tirar tudo...menos meus amigos! Eu não sobreviveria sem eles".
Marcia Lorens - publicitária
"Eu acredito que no momento as pessoas se encontram em situação de estresse elevado, seja pela vida moderna e pelo individualismo que se instalou, após a globalização. Parece cômico, mas o que era para unir, me parece que desuniu, pois causou mais competitividade. Enfim, o convívio está cada dia mais difícil, as pessoas mais intolerantes, mais afrontosas e o distanciamento social está cada vez maior. Quando não compactuamos do mesmo pensamento do outro, somos hostilizados. Essa é a minha visão aqui do Brasil.
Eu já tive a experiência de morar em Nova York e New Jersey, em 2001, e por lá esse isolamento social já existia desde essa época. Por lá se você cair dentro de casa e não conseguir ligar para 911 ficará no chão, porém nas colônias latinas o calor humano ainda existia, não sei como está no momento, mas acredito que nada esteja diferente. No momento, tento manter relação social com pessoas tranquilas e que saibam dialogar, qualquer coisa diferente disso, prefiro me distanciar, causa menos estresse e conflitos.
Ademais, fazer amizades na fase adulta já é mais complicado e, muitas das vezes, pessoas da nossa infância acabam não conseguindo mais caminhar na mesma trajetória que a gente. Estou na busca do meu autoconhecimento para poder viver em paz diante dos desafios modernos".
Maurício Tambasco - jornalista
"Uma amizade sincera sempre foi difícil de encontrar, antigamente dizíamos que dava para “contar nos dedos”. Acredito que essa situação não mudou muito, na verdade, piorou. Muitas vezes o ser humano procura ficar perto de alguém, se aproximar, por interesse, quase sempre envolvendo dinheiro (o famoso vil metal). Estou com mais de 60 anos e posso notar que isso vem ocorrendo faz tempo: nem mesmo após a pandemia conseguiu melhorar essas pessoas, pelo contrário. Alguns valores pessoais como caráter; educação; índole e companheirismo acabam ficando em segundo plano, infelizmente.
Sem saudosismo, posso lembrar de épocas em que nós fazíamos amizades ainda na época da infância. Podia ser até mesmo com colegas da escola. E eram tão fortes esses sentimentos que perduravam por décadas. Eu, por exemplo, recordo de uma pessoa que conheci ao chegar em um colégio, no bairro de Laranjeiras, Zona Sul do Rio de Janeiro, minha cidade natal. Pois ele é meu amigo até hoje, sempre que dá nos encontramos. Principalmente em festas “flashbacks”, aonde dançamos com nossas mulheres e lembramos dos bons tempos (good times). Sei que somos uma raridade nesse mundo, cada vez mais tecnológico e egoísta.
Não quero aqui 'dar uma' de antropólogo; psicólogo ou antropólogo, sou um jornalista à beira de uma aposentadoria. Mas acredito que essa dificuldade das pessoas se relacionarem com laços de amizade pode ter a ver com a tecnologia: os celulares e computadores agilizaram e facilitaram a comunicação entre quase todos. Com o advento da Internet, a galera que antes saía para tomar um chope; bater um papo na esquina; ir ao cinema etc. quase não faz mais isso. E aqui no Rio ainda tem a grave questão da violência. E não posso esquecer, também, da época da pandemia, que fez com que muitos se acostumassem a não sair de casa e ficar trabalhando em padrão de home office "
Moisés Santos Silva – corretor de imóveis
"Não é fácil manter amizade ao longo da vida. Às vezes você tem um amigo de infância e encontra uma pessoa fora daquele grupo e acaba se afastando. Acho a amizade muito importante porque é bom ter alguém que possamos contar, mas hoje é mais difícil. Atualmente, as pessoas só se aproximam se você puder proporcionar alguma coisa como ter uma casa de praia ou na serra para ofertar. Tenho muitos colegas e conhecidos, mas amigos posso contar na palma da mão. Acredito que não seja difícil fazer amigos na fase em que estou porque quando ficamos mais maduros é mais fácil filtrar. Nos EUA eles são muito frios, mas, na minha opinião, nem precisa ir tão longe. Em São Paulo, as pessoas também são mais reservadas".
Amigos virtuais e muita solidão
Doutora em Administração, pesquisadora em Saúde pela UFRJ e especialista em felicidade pela Universidade de Bekerley, na Califórnia, Chrystina Barros, fala sobre o declínio da amizade. "Dá tristeza ver estudos confirmarem o que sentimos no dia a dia. As redes sociais digitais, em vez de aproximar, estão afastando pessoas. Por trás delas, há um algoritmo cruel de comércio que entrega apenas aquilo com que concordamos, para prender nossa atenção e vender audiência", explica a profissional acrescentando que o resultado são relações artificiais em grande volume, mas pobres em honestidade e profundidade.
"Se antes sonhávamos com um milhão de amigos, hoje acumulamos milhares de 'amigos virtuais' e, paradoxalmente, mais solidão. Essa recessão atinge a saúde mental, o corpo e, sobretudo, a possibilidade de felicidade individual e coletiva. Amigo de verdade é quem tem a liberdade de dizer o que não queremos ouvir, com respeito e para o nosso bem. É justamente esse contraditório que estamos perdendo. É triste? Sim. Mas que bom que a ciência começa a iluminar esse caminho, ajudando a mudar a narrativa", resigna-se.
Para a psicóloga Claudia Melo, o declínio das amizades revela mais do que uma mudança de hábitos: expressa um empobrecimento da experiência humana. "Na Psicologia Humanista, Carl Rogers nos lembra que vínculos autênticos são nutridos pela congruência, empatia e aceitação incondicional. Quando as relações se tornam superficiais ou rarefeitas, cresce o risco de solidão, ansiedade e adoecimento psíquico. A vida contemporânea, marcada pela pressa e pela hiper conexão digital, paradoxalmente enfraquece o encontro genuíno. Reconstruir amizades exige disponibilidade para ouvir, presença real e coragem de se mostrar como se é fundamentos para uma vida plena e saudável."
'Precisamos nos reconectar'
Já psiquiatra Rodrigo Luz, do Hospital São Paulo da Unifesp, fala sobre o elo entre os amigos. " A amizade é um afeto silencioso que costura e dá forma à vida humana. Harari, em 'Sapiens', traça a linha do tempo da humanidade e mostra como as relações sociais foram decisivas para o desenvolvimento da nossa espécie. Ainda assim, nos últimos anos temos visto um desgaste discreto, quase imperceptível, porém profundo, nas relações humanas".
De acordo com o profissional, dados da American Perspectives Surveyin indicam um declínio no número de amizades desde a década de 1990. "Não por acaso, é também quando se democratiza a internet e, com ela, as redes sociais. Multiplicam-se os contatos, os seguidores e as curtidas, mas rareiam os amigos com quem se pode compartilhar silêncio ou fragilidade sem medo de julgamento. O mundo digital nos deu a ilusão da presença constante, mas, em troca, nos roubou o tempo lento da convivência, aquele que transforma conhecidos em amigos".
O especialista afirma ainda que isso tem levado ao afastamento entre as pessoas, com laços cada vez mais superficiais, indivíduos mais isolados e, por conseguinte, mais doentes. "Temos observado um aumento na incidência de transtornos mentais; a ausência de amizades estáveis, íntimas e duradouras agrava esse cenário, isso, se não for o cerne do problema. Pessoas sozinhas adoecem mais, têm menos chance de se recuperar e maior risco de desfechos trágicos. Precisamos nos reconectar; não no sentido eletrônico, mas no humano. Retomar amizades, cultivar relacionamentos e resgatar a sensibilidade. Aprender a se expressar e praticar a escuta ativa estão entre os principais caminhos para melhorar uma sociedade que está adoecendo", finaliza.
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