Nuno1outARTE KIKO
O relacionamento entre os poderes tem se dado num clima pesado e torná-lo mais leve não dependerá apenas de Barroso. Ele necessitará, em igual medida, da disposição demonstrada por ele e pelos líderes dos demais poderes no sentido de remover obstáculos ao invés de criá-los, como tem acontecido nos últimos anos. E, assim, construir novas bases para o relacionamento harmônico que a Constituição diz que deve existir entre os poderes, mas que tem faltado no entendimento do Judiciário com o Executivo e, principalmente, com o Legislativo.
Cada um dos três poderes precisa fazer sua parte e, antes de mais nada, procurar se manter nos limites de sua competência. E, assim, contribuir para a criação de um ambiente em que o Executivo não queira fazer aquilo que cabe ao Legislativo, em que o Legislativo não avance sobre as atribuições do Judiciário e que o Judiciário não se arvore a tomar decisões que cabem aos Executivos.
O melhor seria que cada um se mantivesse em seu quadrado — e quanto antes esse equilíbrio for alcançado, melhor. Se, porém, o clima atual for mantido, os poderes da República continuarão a bater cabeça e um seguirá tomando para si as responsabilidades que deveriam caber a outro. A consequência desse tipo de atitude é nefasta e não serve, como às vezes parece, apenas para que alguma autoridade que ocupa um cargo importante demonstre que manda mais do que o outro. Sua pior consequência é justificar a paralisia das instituições.
Como uma delas sempre se mostra disposta a avançar sobre o poder da outra, todas sempre poderão alegar que não cumprem suas obrigações porque sempre tem alguém tentando impedir. E, assim, no final das contas, ninguém é cobrado por não fazer aquilo que a sociedade espera que faça.
Na presidência do STF, Barroso passará a ocupar o quarto posto na linha de sucessão do presidente da República — depois do vice-presidente, do presidente da Câmara e do presidente do Senado. Embora tenha dito que "a virtude de um Tribunal jamais poderá ser medida por pesquisa de opinião", que "contrariar interesses é inerente ao nosso papel" e que "nós sempre estaremos expostos a críticas", ele sabe que o atual clima de confronto entre poderes não faz bem às instituições.
No posto, terá que lidar com o rescaldo do impasse criado na sessão do STF de terça-feira passada, a última sob a presidência da ministra Rosa Weber, que decidiu sobre o chamado "marco temporal" para a demarcação das terras indígenas. Os desdobramentos em torno desse tema, ao invés de apaziguar, têm tudo para aumentar ainda mais a temperatura e o clima de animosidade que têm marcado o relacionamento entre os poderes da República.
A Constituição de 1988 diz, em seu artigo 231, que "São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens". Isso é o que diz o texto da lei. Como se vê, a Carta não estabelece a data para essa ocupação — mas dá a entender que ela não pode ter se dado de uma hora para outra para garantir aos indígenas a posse da terra.
A discussão em torno do chamado "marco temporal" refere-se a uma tese jurídica segundo a qual "os povos indígenas têm direito de ocupar apenas as terras que já ocupavam em 5 de outubro de 1988", quando a Carta Magna foi promulgada. O conceito foi utilizado pela primeira vez em 2009, quando a Advocacia-Geral da União, cujo titular na época era o atual ministro José Antônio Dias Toffoli, elaborou um parecer sobre a demarcação da reserva Raposa-Terra do Sol, no estado de Roraima, que vinha sendo objeto de debates do STF desde os anos 1990.
Àquela altura, já estava em curso na Suprema Corte uma ação em torno da Terra Indígena Ibirama-Laklãnõ, criada em 2003 no coração do estado de Santa Catarina. Dela faz parte uma extensão de 80 mil metros quadrados de terras, que vinha sendo objeto de disputa entre os indígenas da nação Xokleng e agricultores — alguns dos quais descendentes de famílias de imigrantes que se instalaram na região ainda no século 18.
Como o impasse em torno da questão não foi resolvido, o governo de Santa Catarina entrou com uma ação conta a União no Supremo Tribunal Federal (STF). O argumento central do governo catarinense foi justamente o de que a terra não estava ocupada pelos Xokleng no dia 5 de outubro de 1988. Os indígenas, por sua vez, entendiam que tinham sido expulsos dali e que as terras lhes pertenciam por direito ancestral.
Ao decidir, na quarta-feira passada — por nove votos contra dois —, que os indígenas têm direito à área em disputa na Ibirama-Laklãnõ, o STF entendeu que, na prática, a tese do "marco temporal" não existe. Se um determinado grupo entender que um determinado pedaço de terra era ocupado por seus antepassados, tem todo o direito de reivindicar sua posse. Por esse critério, um grupo pode se apresentar, por exemplo, como descendente dos indígenas tamoios, que ocupavam os arredores da Baía de Guanabara e apoiavam os franceses que invadiram a região no século 16.
Os tamoios foram expulsos de suas terras tradicionais pelos temiminós liderados pelo cacique Arariboia — que viviam na região onde hoje é Niterói. Eles apoiavam os portugueses nas batalhas do século 16 que resultaram na fundação da cidade do Rio de Janeiro por Estácio de Sá em 1565. Os descendentes dos tamoios poderão, esse caso, mover um processo para reivindicar a posse de tudo o que existe entre a Vieira Souto e a Lagoa Rodrigo de Freitas. Já no que aconteceria se eles ganharem a causa?
Essa possibilidade, claro, é caricata — mas, em outros casos, a decisão em relação ao "marco temporal" poderá servir de base para reivindicações bem reais, que poderão ter impacto negativo sobre o agronegócio, setor que tem carregado a economia do Brasil nas costas nos últimos anos. Sendo assim, e para piorar ainda mais o clima de confronto entre os poderes, os representantes dos produtores rurais no Parlamento reagiram à decisão do STF jogando um pouco mais de gasolina na fogueira que arde em torno dessa questão.
CANETA PRESIDENCIAL — Antes de prosseguir, é bom deixar claro o seguinte: concorde-se ou não com a decisão, o STF, neste caso específico, não se imiscuiu em área de competência do Poder Legislativo. O que ele fez foi decidir sobre uma ação movida por uma parte legítima, ou seja, o estado de Santa Catarina, em torno de uma disputa que vinha se arrastando por 20 longos anos.
Em qualquer momento nesse longo período que se estende de 2003, quando a área da Ibirama-Laklãnõ foi demarcada, e a semana passada, quando o tribunal concluiu a discussão em torno da questão, os parlamentares poderiam ter se articulado e aprovado uma lei que regulamentasse o artigo 231 da Constituição. Eles, no entanto, esperaram que o STF começasse a se mexer para tratar do assunto.
No instante exato em que o Plenário do STF concluiu a decisão sobre o "marco temporal", os senadores, do outro lado da rua, discutiram e aprovaram em regime de urgência um projeto que havia sido votado em maio pelos deputados. Esse projeto transforma em lei a tese jurídica do "marco temporal" e determina que só serão passíveis de demarcação as terras que estavam ocupadas pelos indígenas no dia da promulgação da Carta Magna.
A nova lei também estabelece critérios para práticas que não estavam em discussão na ação julgada pelo STF — e que, portanto, não foram contempladas pela decisão dos ministros. Entre elas está a questão polêmica da exploração econômica das terras indígenas — inclusive pelo agronegócio, por mineradoras e pelo turismo. "Somos a favor do PL 2903/23", disse o deputado Joaquim Passarinho (PL-PA), referindo-se à medida que, agora, seguirá para sanção do presidente da República. Passarinho é presidente da Frente Parlamentar do Empreendedorismo. "Precisamos dar uma segurança jurídica para o campo. Não temos como empreender no país sem uma segurança", declarou.
É claro que a celeridade com que o Senado agiu em torno do tema é uma consequência direta do rumo que o julgamento da ação tomou no STF. Mas, agora, virou uma questão que envolve os três poderes. A políticos aliados, Lula já manifestou a intenção de vetar o texto. Os políticos que apoiam a medida, em resposta, declararam que, se o presidente fizer isso, o veto será derrubado no plenário do Congresso.
Não se trata, como se vê, de uma questão simples e muita água ainda há de correr por essa enxurrada antes que o tema seja pacificado. Caso o presidente realmente vete a lei aprovada na terça-feira, ele estará desagradando políticos que vêm sendo atraídos para a base de apoio parlamentar a seu governo à custa de postos no ministério e da liberação generosa de bilhões de reais em emendas parlamentares. Esses políticos, em sua maioria, foram eleitos com compromissos que incluem a defesa do agronegócio e não podem correr o risco de desagradar suas bases de forma tão flagrante.
Nesse clima, o descontentamento dos parlamentares em torno do fim da tese do "marco temporal" tenderá, na melhor das hipóteses, a dificultar a aprovação de medidas de interesse do governo no Congresso. Ou de torná-la, senão mais complicada, certamente bem mais cara. Se, por outro lado, Lula não vetar o texto e deixar tudo como está, ele desagradará políticos aliados e, também, o STF — que se sentirá desautorizado pela caneta presidencial.
Na quarta-feira passada, enquanto a notícia da aprovação do Projeto de Lei em torno do "marco temporal" repercutia pelo país afora, começou a tramitar na Câmara um projeto de autoria do deputado Domingos Sávio (PL-MG) que vai dar o que falar se vier a ser aprovado. Com o apoio de 175 deputados que assinaram o texto, Sávio pretende dar ao Congresso poderes para derrubar decisões tomadas pelo STF.
Isso mesmo. Pela proposta, o Poder Legislativo poderá, após o trânsito em julgado (ou seja, quando não cabem mais recursos a uma decisão judicial), tornar sem efeito uma decisão judicial que tenha extrapolado "os limites constitucionais". Como se vê, é uma questão complexa, que vai na contramão das intenções de paz manifestadas pelo ministro Barroso em seu discurso de posse.
Uma ideia como essa, por mais que os parlamentares tenham motivos para se queixar de decisões do STF, tem poucas chances de seguir adiante — e, ainda que seguisse, seria objeto de inúmeras controvérsias judiciais. Barroso está certíssimo ao acenar uma bandeira branca em direção aos demais poderes. Mas não pode, de qualquer forma, manifestar intenções de buscar o equilíbrio e agir como se o poder que preside fosse superior aos demais. Esse, sem dúvida, será o maior desafio de seus dois anos de mandato.
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