O caso é chocante demais para não cobrir a sociedade de indignação e as autoridades de vergonha. Em qualquer lugar do mundo, a execução a sangue frio de quatro amigos despreocupados, que batiam papo e tomavam cerveja num quiosque à beira-mar, deveria gerar repulsa geral — com toda linha criminosa, do executor ao mandante, identificada e posta na cadeia. Não importa a razão do crime! Não interessa saber se a chacina teve motivação política, como as relações de parentesco de uma das vítimas chegou a sugerir. chegou a ser aventado.
O médico Diego Ralf de Souza Bomfim, um dos três que perderam a vida na madrugada de quinta-feira, em frente ao o hotel em que estavam hospedados na Barra da Tijuca, era irmão de Sâmia Bomfim, de São Paulo, e cunhado de Glauber Braga, do Rio de Janeiro, ambos deputados do PSOL. Mas isso não tem a menor relevância diante da barbaridade. Não interessa, da mesma forma, saber se houve ali algum acerto de contas nem se as vítimas foram mortas no lugar de outras pessoas. Essa hipótese, por sinal, está praticamente confirmada. Ela se baseia na infeliz semelhança física de um dos mortos na chacina com um miliciano carioca.
Toda história dos médicos assassinados e dos monstros que os mataram é uma sucessão de horrores. O que causa mais repulsa é a naturalidade com que os casos de violência extrema têm sido tratados. A situação no Rio chegou a tal ponto que, tomando emprestado o título do livro célebre da filósofa Hannah Arendt sobre o holocausto judeu na Segunda Guerra Mundial, estamos diante da “banalidade do mal”: falamos de crimes estúpidos como se comentássemos o resultado de uma partida de futebol.
É verdade que a violência também está presente em outras partes do país. Da mesma forma, é verdade que a situação por aqui é pior do que em outros lugares — e quanto mais a sociedade cobra o fim da violência, mais ela se alastra. Além de Bomfim, outros dois médicos, ortopedistas que estavam no Rio de Janeiro para participar de um Congresso, morreram. Eles se chamavam Marcos de Andrade Corsatto, professor da Universidade de São Paulo, e Perseu Ribeiro Almeida — que, por sinal, era quem se parecia com Taillon Barbosa, um dos chefes da milícia que pratica crimes e explora moradores no bairro da Muzema, em Rio das Pedras. Um quarto médico, Daniel Proença, foi levado para um hospital da região da Barra da Tijuca, onde a chacina aconteceu.
Os quatro médicos chegaram a registrar a descontração que viveram em seus últimos momentos em fotos publicadas em suas redes sociais. Depois, a alegria foi trocada pelo pavor, como mostram as imagens captadas por câmeras de segurança. Em determinado momento, um carro estacionou do outro lado da rua. Dele desceram três facínoras vestidos de preto, que vão em direção das vítimas e dão início ao tiroteio. Concluído o morticínio, partem em que ninguém os incomode...
O que mais aumenta a sensação de impotência diante dessa situação que transforma qualquer um numa vítima em potencial da bandidagem é a tranquilidade com que os crimes hediondos são cometidos. Os facínoras agem sem receio de serem alcançados pela Justiça — e só têm a temer o acerto de contas com os próprios comparsas, como, aliás, parece já ter começado a acontecer com os executores de Bonfim, Corsatto e Almeida.
Na sexta-feira, muitos receberam a notícia da descoberta de quatro corpos carbonizados, que seriam dos executores da chacina, como se a justiça tivesse sido feita. Nada disso! Se é verdade que os quatro corpos são dos executores da chacina, o que aconteceu ali não foi justiça e, sim, a continuação do crime e da situação de violência.

PRIMEIRO PASSO — Uma queixa frequente da sociedade é a inércia das autoridades, que, passadas as eleições em que prometem ao eleitorado combater o crime, raramente adotam ações concretas nessa direção. Isso, porém, parece estar mudando... Na segunda-feira passada, o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva tomou uma atitude que, se for levada adiante, pode significar o começo da solução desse problema, que se tornou grande demais para ser resolvido no curto prazo.
Trata-se do lançamento em Brasília, pelo ministro da Justiça Flávio Dino, do Programa de Enfrentamento das Organizações Criminosas — ENFOC — destinado justamente a combater de frente a ação dessas quadrilhas que agem sem preocupação. Os objetivos do programa, que contará com um orçamento de R$ 900 milhões, são claros e incluem propostas que vêm sendo postas na mesa e ignoradas pelo governo federal pelo menos desde os anos 1990.
Entre elas estão a de promover a integração entre as polícias federais e estaduais; a de valorizar e capacitar os profissionais que atuam nas instituições de segurança pública; a de investir nos trabalhos de investigação e nas ações de inteligência; e a de desenvolver mecanismos que deem aos órgãos de segurança informações que os levem a conhecer em detalhes o funcionamento das diferentes organizações criminosas.
O plano é positivo e se, de fato, for posto em prática, o Brasil terá dado o primeiro passo efetivo no combate ao crime organizado, ao narcoterrorismo e à desenvoltura com que os cartéis internacionais — alguns com conexões diretas com governos estrangeiros — têm agido no território nacional. O governo federal, porém, só começou a pensar em medidas efetivas para enfrentar essa situação depois que os índices vergonhosos de criminalidade na Bahia praticamente o obrigaram a se mexer para preservar sua própria reputação.

CUIDADOS EXCEPCIONAIS — Até onde a memória alcança, esta é a primeira vez que um governo petista fala de segurança pública sem querer tapar o sol com a peneira. Ou seja, sem afirmar que o caminho para a redução da violência consiste em dificultar o trabalho da polícia e se concentrar na reparação dos “erros históricos” de uma sociedade que nega oportunidades à população mais vulnerável. E, por essa razão, acaba transformando em criminosos jovens que deveriam contar com a proteção do Estado.
Na visão da esquerda — o que inclui o PT do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o PSOL de Sâmia e Glauber, o PSB, atual partido de Flávio Dino, e o PcdoB, seu partido anterior — qualquer ação mais dura de combate ao crime deve ser condenada. Embora essa postura soe como música aos ouvidos dos bandidos, o pretexto é o de que a polícia, ao agir, ao invés de proteger, expõe a riscos a população das comunidades vulneráveis.
Nunca é demais lembrar que, em junho 2020, durante a pandemia da Covid-19, o STF, por meio de uma decisão do ministro Edson Fachin, atendeu a uma solicitação do PSB e proibiu que a polícia pusesse o pé em comunidades do Rio. As operações passariam a ser limitadas a casos específicos, que exigiriam justificativa por escrito e autorização judicial. Além disso, teriam que ser realizadas com “cuidados excepcionais” para que a população não fosse exposta a riscos.
Ou seja, até que o Estado pudesse agir, os criminosos que ele perseguia já estariam em seus esconderijos ou, então, prontos para receber a tiros de grosso calibre qualquer policial que se atrevesse a invadir seus domínios... É bom deixar claro que ninguém aqui está defendendo ações truculentas em que a polícia, ao medir forças com criminosos pés-de-chinelo, que ocupam o rodapé da pirâmide da bandidagem, nunca chegam às cabeças que comandam o comércio de drogas, o contrabando, a extorsão, o tráfico humano e outras ações que geram bilhões e bilhões em dinheiro sujo.
A solução não pode se basear na violência, porém, também não pode se apoiar apenas nas “ações afirmativas” que o governo, até para não se comprometer com o eventual fracasso dos programas, sempre defendeu quando discute segurança. Nesse caso, o ENFOC pode ser considerado uma mudança de rumo do governo no trato com a criminalidade. Antes da iniciativa ser anunciada na semana passada, o governo havia lançado, no mês de julho, o Programa de Ação na Segurança (PAS). Por trás dessa sigla sugestiva, que remete diretamente à paz tão desejada, tudo o que havia era um amontoado de lugares comuns e medidas paliativas, incapazes de causar um arranhão na estrutura do crime organizado.
O PAS estava voltado para a compra de viaturas e para a instalação de bases na Amazônia. Falava na prevenção de crimes contra o Estado democrático e prometia a liberação de verbas para as polícias estaduais — o que é uma obrigação constitucional. Também estava voltado para casos de violência nas escolas, para a restrição do uso de armas de fogo pela população e para investimentos em projetos culturais “em territórios de altos índices de violência e vulnerabilidade social”.

CAVALO NO CIO — O caso dos investimentos culturais é emblemático. Investir neles para enfrentar esse tipo de problema, como se sabe, é uma ação que só fará sentido no dia em que for coordenada com propostas mais efetivas de afirmação da presença do Estado nas comunidades dominadas pela bandidagem. Do jeito como esse dinheiro normalmente é gasto, ele não contribui para a solução do problema e pode até ajudar a agravá-lo.
Em agosto passado, por exemplo, foi divulgado um vídeo de uma apresentação em que uma dançarina fantasiada com uma máscara de um cavalo interagia com alunos do CIEP Luís Carlos Prestes, na Cidade de Deus, ao som do funk “Cavalo no Cio”. O “espetáculo” foi feito por um grupo que havia recebido R$ 50 mil da prefeitura para levar cultura e entretenimento a estudantes do primeiro grau e já havia passado por outras três escolas.
Não se pode condenar a ideia de investimentos culturais com base apenas nesse exemplo extremo de mau gosto.
Mas, sinceramente, esperar que esses projetos surtam algum efeito no combate à violência chega a lembrar a anedota surrada em que um preguiçoso resolve cometer suicídio. Para consumar o ato, amarra uma corda em volta do pescoço e ata a outra ponta ao galho de um arbusto que acabou de ser plantado. Sentando numa cadeira, ele fica à espera de que a árvore cresça, estique a corda e o enforque... A sociedade não pode esperar tanto: ela quer uma solução para ontem e ela não virá sem ações de inteligência, de contrainteligência e de asfixia das organizações criminosas.
O governo federal sempre agiu em relação ao Rio como se nada tivesse a oferecer no combate ao crime. Afinal, os governos estaduais são os responsáveis diretos pelas ações de segurança em seus territórios e os problemas que enfrentam, por mais graves que sejam, normalmente não arranham a reputação do governo federal.
No caso específico do Rio, o governo federal, sempre que esteve nas mãos do PT, sempre agiu como se tivesse mil motivos para não querer sujar as mãos nesse lodaçal. Afinal, o estado não é governado por companheiros do presidente Lula desde 2003, quando Benedita da Silva deixou o Palácio Guanabara e o entregou a Rosinha Garotinho... Mas bastou que a segurança na Bahia expusesse o fracasso das gestões petistas no estado para que Brasília chamasse para si a responsabilidade de dar um jeito na situação.
A Bahia vem sendo vendida nos últimos anos como uma espécie de vitrine do sucesso petista. Seu governo está nas mãos de correligionários de Lula desde 2007. Isso, porém, vale para o que é bom e para o que é ruim. Se a situação chegou ao ponto a que chegou, a culpa não é de qualquer “herança maldita”, mas apenas das políticas ineficientes adotadas pelos petistas destacados que vêm governando o estado pelos últimos 17 anos. Entre eles destaca-se a figura de Rui Costa, ministro chefe da Casa Civil, e um dos auxiliares mais próximos do presidente. Qualquer sujeira atirada contra ele traz o risco de respingar na imagem de Lula.

AÇÕES LETAIS — O Rio — e ninguém quer esconder essa realidade — tem problemas sérios a resolver no campo da segurança. Antes mesmo da chacina dos médicos, o estado havia ocupado o centro do debate com a divulgação de um vídeo que mostrava criminosos recebendo treinamento militar numa área de lazer localizada na região da Maré, na Zona Norte do Rio. À luz do dia e com a certeza de que não seriam importunados, os criminosos corriam de um lado para o outro carregando fuzis. Eles se jogavam ao chão, se punham em posição de tiro e executavam manobras que reproduziam técnicas de treinamento das forças oficiais de segurança.
Foi uma cena chocante, que provocou espanto por alguns dias — mas logo caiu no esquecimento. Todo carioca está cansado de saber que o complexo de favelas da Maré é dominado por facções criminosas que se valem da ausência do estado para fazer dali um dos principais hubs do narcotráfico no país.
E a Bahia? A bem da verdade, as estatísticas de segurança na Bahia vêm piorando ano a ano sem que o país tenha se atentado para a gravidade da situação. Em 2006, antes que o PT assumisse o governo do estado, a Bahia registrou um total de 3.311 homicídios. Os números de vítimas de mortes violentas intencionais no Estado em 2022 foi de 6.659 — ou seja, um aumento de 100%. Esses dados constam do mais recente levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que publica estatísticas de criminalidade a partir de informações coletadas nas secretarias estaduais.
O número de mortes, por mais exagerado que seja, deixou a Bahia em segundo lugar no ranking da violência — que é medido pelo número de assassinatos para cada cem mil habitantes. Nesse caso, as 6.659 mortes violentas na Bahia representaram um índice de 47,1 para cada cem mil moradores. A primeira posição pertence ao Amapá, onde os 371 assassinatos registrados em 2022 significam 50,6 para cada cem mil habitantes.
Um dado que chama atenção no levantamento do Fórum é o da letalidade das ações policiais. Toda vez que alguma pessoa morre em decorrência de ação policial do Rio de Janeiro ou de São Paulo — ainda que a vítima tenha sido alvejada numa troca de tiros em que os criminosos usavam armas de grosso calibre, como acontece na maioria dos casos —, os políticos de esquerda erguem a voz para condenar a ação. E sempre dão um jeito de culpar os governos locais que, nos casos desses dois estados, não estão nas mãos da esquerdo, e até de acusá-los de cúmplices dos assassinatos.
Pois bem... Em 2022, 419 pessoas perderam a vida em São Paulo em decorrência de ações policiais. No Rio de Janeiro, o número foi maior: 1330. A polícia baiana foi além. Campeã brasileira em ações letais, ela fez 1464 vítimas. E essa situação não melhorou. De acordo com o Instituto Fogo Cruzado, o número de mortos por policiais na Região Metropolitana de Salvador em setembro deste ano — 137 pessoas — foi três vezes maior do que a soma das mortes pela polícia nas regiões metropolitanas do Rio e de Recife.
O governo federal, claro, quer resolver esse problema — até para evitar que a incompetência escancarada da política de Segurança Pública de seu partido continue incomodando o Planalto. E chamou para si a responsabilidade que, nos outros estados, sempre fez questão de jogar no colo dos governadores. Tanto assim que, na quinta-feira, enquanto os olhos do país se voltavam para o Rio e para o assassinato dos médicos, o ministro da Justiça cumpria agenda em Salvador, assinando uma série de acordos e prometendo reforçar a presença das forças federais de segurança no estado.
Pegou mal. Tão mal que, no dia seguinte, Dino se deu conta e mandou seu Secretário-Executivo, Ricardo Capelli, conversar com o governador Cláudio de Castro. Não assinou um único protocolo de intenções. Apenas se interessou pela investigação do assassinato dos médicos. Tomara que o governo federal ajude a Bahia a se livrar da situação difícil que atravessa. Mas também tomara que ele não concentre todos os recursos por lá e não se esqueça que outros lugares do país, inclusive o Rio, estão com problemas sérios nesse campo. É esperar para ver.