Paredes construídas sobre o pó do Cerrado, sem móveis, sem saneamento básico na Estrutural. E agora sem esperança com o fim do auxílio emergencial - ONG RIO DE PAZ
Paredes construídas sobre o pó do Cerrado, sem móveis, sem saneamento básico na Estrutural. E agora sem esperança com o fim do auxílio emergencialONG RIO DE PAZ
Por MARTHA iMENES*
A pandemia de coronavírus trouxe à tona (e com mais nitidez) o que muitos teimam em não ver: a desigualdade social que cria abismos intransponíveis no Brasil. O auxílio emergencial, que primeiro veio como 'seiscentão' e depois foi cortado pela metade e virou 'trezentão', acaba agora no dia 31 e não deve ser estendido, embora a pandemia persista. Serão 66 milhões de pessoas desassistidas e 24 milhões mergulhadas na pobreza extrema. De um lado milhares de pessoas que precisam do benefício, de outro gente que não tinha direito e recebeu indevidamente. Já outros tinham direito e ficaram a ver navios...
Na primeira quinzena de dezembro, a ONG Rio de Paz, apoiada pela ONG Visão Mundial em Brasília, fez uma manifestação na Esplanada dos Ministérios cobrando a extensão do benefício enquanto durar a pandemia de coronavírus. "No Brasil existem 14 milhões de desempregados, 13 milhões de pessoas vivendo com R$ 130 por mês e 52 milhões de pobres", conta ao jornal O DIA Antonio Carlos Costa, presidente da ONG Rio de Paz. Segundo ele, a suspensão do auxílio emergencial vai provocar a fome na população brasileira. E os mais afetados serão os moradores de favelas.
"Há uma coisa na pobreza do Brasil que me causa muita revolta: é a miséria vivida por cidadãos de um país que está entre as dez maiores economias do planeta", disse. "Tá aí a comida do pobre. No lugar de feijão com arroz é bala", lembrou Antonio referindo-se aos ataques na favelas que vitimam inocentes, como foi o caso das primas Rebeca e Emily, de 7 e 4 anos, em Caxias, Baixada Fluminense. As duas morreram juntas vítimas de bala perdida.
Uma pesquisa da Confederação Nacional da Indústria (CNI) divulgada no dia 14 corrobora a preocupação de Antonio, da ONG Rio de Paz: a maior parte das pessoas que recebeu o auxílio do governo utilizou o dinheiro para comer. Ou seja, com a continuidade da pandemia e o fim do auxílio emergencial, essas pessoas ficarão sem comida.
Segundo a pesquisa, mais da metade (52%) dos entrevistados pela CNI recebeu o auxílio emergencial do governo. Desse total, o uso mais frequente do dinheiro recebido do auxílio emergencial foi para compras de alimentos, roupas, produtos de higiene, limpeza ou algum outro tipo de bem de consumo, assinalado por praticamente metade dos entrevistados (49%). Outros 30% afirmaram que o principal uso foi o de pagar contas, como de água, energia elétrica ou gás. Já 18% afirmaram que usaram o dinheiro para pagar dívidas.
A pesquisa Retratos da Sociedade Brasileira foi feita a partir de 2 mil entrevistas realizadas pelo Ibope Inteligência em 127 municípios no período 17 a 20 de setembro de 2020.
Nas portas do Planalto
Apenas 13 quilômetros separaram a comunidade Santa Luzia, mais conhecida como Estrutural, em Brasília, no Distrito Federal, do Palácio do Planalto, sede do governo federal, informa a Rio de Paz, que esteve na localidade. Nem a proximidade entre os lugares é suficiente para sensibilizar as autoridades para a miséria do lugar. São ruas de chão alagadas, barracos amontoados e nem sempre de alvenaria. Nessas condições de miserabilidade que vivem milhares de pessoas desempregadas ou em trabalho informal que dependem do auxílio emergencial para sobreviver. Os moradores da comunidade temem passar necessidade com o fim do benefício, que termina esse mês.
Retrato da fome
Daniele Soares de Oliveira, de 28 anos, é moradora da Estrutural, no DF. Ela e o marido estão desempregados. O casal tem uma filha e depende do auxílio emergencial. " Essa ajuda foi muito importante. Meu marido foi mandado embora e tínhamos muitas contas para pagar", conta. "Vai ser complicado sem o benéfico. A gente quer trabalhar e receber pelo nosso esforço e não pedir nada pra ninguém", diz Daniele.
Maria da Abadia Freitas de Almeida, de 36 anos, a Bia, tem seis filhos e sustenta a casa com o auxílio emergencial. "Mas também recebo ajuda de outras pessoas. Não tenho com quem deixar meus filhos porque não tem creche. O benefício faz muita diferença. Vamos passar necessidade", lamenta.
Eleuzina Pereira dos Santos, de 37 anos, é catadora de recicláveis, mas o que ganha não dá para sustentar os três filhos. "Com o dinheiro do auxílio fiz um muro pra minha casa. Sou sozinha com meus filhos e corro risco. O trabalho de reciclagem paga pouco e ficou difícil com a doença (pandemia). O auxílio me ajudou muito. Fez muita diferença ", explica.
"São 40 milhões de desempregados. E, agora esse país que não garante o direito à vida quer expor a sua população à fome. Não estou falando de vagabundo porque costumam dizer que o pobre desempregado é vagabundo. Eu estou falando de miseráveis que estão procurando trabalho e não encontram e vão amanhecer janeiro sem essa migalha dada pelo governo federal. Trezentos reais. Vai ser um mar de brasileiros sem saber como colocar o arroz dentro de casa. O fim do auxílio emergencial é crime", finaliza Antonio.
No RJ, 5,5 milhões vão ficar sem o auxílio
Em todo Estado do Rio de Janeiro, 5,5 milhões de pessoas receberam o auxílio emergencial do governo federal durante a pandemia e coronavírus. Esse número corresponde a 32% da população. Somente na capital, foram mais de 2 milhões de pessoas beneficiadas, totalizando 30,05% da população, segundo pesquisa divulgada pela Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj) no dia 17.
Isso quer dizer que com o fim do auxílio serão 5,5 milhões de pessoas no estado mergulhadas na pobreza extrema porque, com a covid à solta, escolas estão fechadas, portanto mães não têm onde deixar seus filhos; trabalhadores domésticos foram dispensados, pequenos negócios fecharam, o comércio reduziu seu efetivo e ambulantes e autônomos ficaram sem trabalho.
"Se o auxílio emergencial acabar, eu e minha família podemos passar fome". O drama da desempregada Raquel Xavier Soares, de 36 anos, que tem 7 filhos e o marido vive de biscate, é o mesmo de milhões de brasileiros que dependem do auxílio emergencial. Raquel, que mora na comunidade do Quiabo, na Vila Kennedy, Zona Oeste do Rio. A casa é de apenas um quarto e a cozinha é separada da sala por um sofá.
O mesmo drama vive Vania Silva da Conceição, 60, que mora com o marido, o filho e o neto de 12 anos na mesma comunidade que Raquel. Todos desempregados e a criança sem aula.
"O auxílio foi uma grande ajuda. Moro num barraco e tô tentando terminá-lo. Com o auxílio consegui levantar um muro porque tô tentando fazer um quarto porque não tenho um. Estamos desempregados porque não encontramos emprego. Todo mundo vai passar necessidade. Desemprego, tudo caro. Pelo menos com seiscentos reais dá pra gente se virar um pouco. Sem ele, como vai ficar? Vai todo mundo morrer de fome e não só de doença, mas e fome também".
FMI faz alerta sobre pobreza extrema
O fim do auxílio emergencial no Brasil acendeu o sinal vermelho até no Fundo Monetário Internacional (FMI), menos no governo Bolsonaro. A diretora do fundo, Kristalina Georgieva, alertou que o fim do auxílio vai criar obstáculos à recuperação econômica, aumentar a desigualdade e fazer com que o Brasil chegue a 24 milhões de pessoas em situação de extrema pobreza.
"Cortar essa corda de salvamento prematuramente é um perigo para a pobreza e a desigualdade e também para o sucesso na recuperação mais rápida e robusta", acrescentou.
Na sexta-feira a Medida Provisória 1000, para garantir o auxílio emergencial, estava na pauta para votação da Câmara, mas foi retirada após pedido do governo. A decisão foi criticada pelo deputado federal Alessandro Molon (PSB-RJ). "Sem vacina contra covid e com desemprego e preços de alimentos em alta, Bolsonaro quer deixar os brasileiros à própria sorte, sem o benefício", escreveu no Twitter.
O sociólogo Rogério Barbosa, do Instituto de Estudos Sociais e Políticos (Iesp) da Uerj, disse ao Estadão que o fim do benefício deve fazer com que o país volte aos índices de desigualdade da década de 1980.
"O índice de pobreza, situação de quem recebe até um terço do salário mínimo (hoje, R$ 348), caiu de 18,7% em 2019 para 11% em setembro de 2020. Sem o benefício, esse indicador pode disparar e alcançar 24%. Ou seja, quase um quarto da população", calcula.*Com informações da ONG Rio de Paz e Agência Senado
*Com informações da ONG Rio de Paz
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