Para os Estados Unidos, a criação do Banco Asiático de Investimento e Infra-estrutura (AIIB em inglês) gera um constrangimento: seus tradicionais aliados europeus aderiram ao banco, que é liderado por um dos maiores críticos ao sistema de Bretton Woods, do Banco Mundial e o FMI. Para os europeus, demonstra que a sua urgente necessidade de atrair negócios internacionais (e especialmente asiáticos) forçou-os a relevar o fato de que o novo banco deverá ter menos salvaguardas e condicionalidades que eles mesmos exigem das instituições de Bretton Woods. Para o Banco Mundial (BM), evidencia a ameaça de perda, ainda maior, de protagonismo. Tudo isto está na imprensa, com análises bem fundamentadas. O que não tenho visto são analises de porque os asiáticos, e particularmente os chineses, decidiram apostar bilhões de dólares em uma iniciativa assim. Arrisco algumas linhas.
Essa não é a primeira iniciativa de criação de um banco público internacional com protagonismo chinês. Como amplamente noticiado, em julho do ano passado nasceu, em Fortaleza, o Novo Banco de Desenvolvimento (NBC) tendo como sócios fundadores o Brasil, a China, a Índia, a Rússia, a China e a África do Sul. Essa iniciativa, como já mencionamos, se associa, sim, à perda de paciência em relação às reformas de governança das instituições de Bretton Woods: afinal, são quase 20 anos de negociações gerando parcos avanços, mesmo com a formalização do grupo das 20 maiores economias (o G-20) logo após a eclosão da crise financeira em 2008. Mas há uma outra fonte de “perda de paciência”, muito mais pragmática: o crescente hiato entre as necessidades de investimento em infraestrutura e a capacidade (ou desejo) de resposta das instituições financeiras existentes. Para se ter idéia do problema, o G-20, com dados do Banco Mundial e da OCDE (ver www.g20australia.org) fala na necessidade de, até 2020, US$ 1 trilhão a US$ 1,5 trilhão por ano (!) de investimentos em países em desenvolvimento, somente para satisfazer às demandas de urbanização e para melhorar a integração global e a conectividade.
Para as economias avançadas, estima a OCDE, os volumes são também dessa magnitude, especialmente para outros usos: investimentos voltados a reduzir a emissão de carbono da matriz energética, do sistema de transporte e da infraestrutura social. Distintas também são as possíveis fontes de financiamento. Isto porque, por um lado, já possuem instituições voltadas para o financiamento de longo prazo; e não só privadas: como mencionado nesta coluna, os bancos de desenvolvimento e agências públicas sempre tiveram um papel de destaque no financiamento de longo prazo, e esse papel somente aumentou nestes anos de crise. Por outro lado, as políticas de taxas de juros baixíssimas na OCDE tem gerado uma abundância de recursos no mercado, parte do qual se volta para títulos de longo prazo.
Para as economias em desenvolvimento, os desafios são maiores. Primeiramente porque, para a maioria delas, o financiamento privado de longo prazo, que já era escasso antes da crise, simplesmente desapareceu. Segundo, porque, também na maioria dos casos, suas restrições fiscais só aumentaram, o que dificulta a expansão do investimentos e financiamento públicos em infraestrutura. Terceiro, porque manter altíssimas taxas de juros domésticas foi uma das formas que muitas economias encontraram para blindar-se contra a volatilidade dos capitais internacionais — criada em grande medida pelas políticas monetárias “não convencionais” nas economias avançadas. Por último, porque as fontes internacionais privadas para o financiamento de longo prazo secaram, e as fontes públicas (do Banco Mundial, por exemplo) são reconhecidas como insuficientes há muito tempo.
Interessantemente a China é, entre as economias em desenvolvimento, a que menos tem razão para perder a paciência. Afinal, conta com sólidas instituições domésticas para seus investimentos em infraestrutura, como o seu banco de desenvolvimento — que só em 2013 emprestou cerca de RMB 7,15 trilhões (mais de US$ 1,1 trilhão e mais de RS$ 3 trilhões) — e outros bancos públicos. Mas, sendo uma nação eminentemente comercial, reconhece que sua prosperidade depende do crescimento de outras economias — dentre as quais, e frente à relativa estagnação de muitas economias avançadas, as emergentes são absolutamente essenciais. E sabem também que a prosperidade dessas últimas depende de sua capacidade de “fechar o hiato” do financiamento de infraestrutura e logística. Isto, por si só, justificaria para eles a criação do AIIB; mas, de quebra, ao liderar a criação do AIIB, cria para empresas chinesas um acesso privilegiado a um mercado multibilionário — um “negócio da China”, que também explica em parte a adesão de nações como a Alemanha, Inglaterra, França e Itália.
Concluo, como usual, com uma reflexão do que isto tudo significa para o debate no Brasil.
Primeiramente, creio que merece aplauso a decisão de aceitarmos o convite para participar do AIIB — demonstra uma visão consistente e correta de como reagir a uma economia política internacional em rápida mutação. O AIIB, assim como o NBD, gerará oportunidades de acesso a financiamento público e privado internacional de longo prazo, e muitos negócios para as empresas brasileiras.
Em segundo lugar, chamo a atenção para o fato de que esta iniciativa não parece representar, de forma alguma, abandonar a busca de participação privada no financiamento de longo prazo. Pelo contrário: a criação do AIIB, com ampla adesão de outras grandes economias, indica que a existência de instituições financeiras públicas podem ser fundamentais para alavancar recursos privados e desenvolver instrumentos e mercados de financiamento de longo prazo. No momento em que o debate no Brasil muitas vezes tem sido tão crítico em relação aos seus bancos públicos, uma notícia como esta deveria nos fazer refletir.