Em datas assim, eu também recapitulo muita coisa que nunca foi fotografada por câmeras e mesmo assim estão guardadas nos meus porta-retratos imaginários, com aquela moldura retrôArte: Kiko
Álbuns da vida
Será que as nossas histórias só existem enquanto houver outras pessoas que possam contá-las também? O quanto há de nós na lembrança dos outros, mesmo que olhares diferentes produzam narrativas distintas?
Procurei a entrevista no site do 'Fantástico' pouco tempo após a sua exibição e logo eternizei algumas passagens na minha mente. À esquerda do vídeo, o ator Selton Mello falava à jornalista Renata Ceribelli sobre o seu livro-memória, que não por acaso se chama 'Eu me lembro'. Nele, o ator responde a perguntas de 40 pessoas, guardando recordações de forma interativa.
Na entrevista em questão, aliás, Selton falou sobre a doença da mãe, Selva, que sofre de Alzheimer, e ainda recordou um fato marcante da sua história: "Tem uma passagem do livro que acho emblemática. Começaram a gritar no prédio: 'Incêndio', e a gente saiu correndo do prédio. E a minha mãe falou assim: 'Pega os álbuns! Pega as fotos! Pega os porta-retratos'. (...) Isso é muito lindo. O que fiz nesse livro é um pouco o que minha mãe fez naquele episódio, sabe assim? Estou salvando as minhas memórias".
Por segundos, minutos, horas ou semanas, fiquei relembrando e imaginando como teria sido essa cena e pensei ainda nos inúmeros porta-retratos que tentamos guardar durante a vida. São imagens que nunca foram clicadas de fato por uma câmera fotográfica, mas com certeza estão registradas pelo nosso coração.
Canceriana, sei que me alimento da nostalgia e quero colocar boa parte do que vivi em uma parede cheia de memórias para não correr o risco do esquecimento. Na minha fantasia, pego as cenas da minha trajetória e coloco até uma moldura imaginária bem retrô, para dar uma cara de algo já vivido e, justamente por isso, ainda mais valioso. Sim, eu prezo por recordações. Não à toa ainda sou fascinada por alguns monóculos que seguem pela casa após a partida da minha mãe.
Não é por acaso também que a minha escrita é um laço eterno entre tempos, especialmente o presente e o passado. Não moro no que já se foi e entendo que nem todos os pretéritos são perfeitos. Mas são eles que me constituem.
Assim, fiquei particularmente tocada por outra declaração de Selton Mello a Renata Ceribelli. "Se ela esquecer, eu fui esquecido? Eu faço parte da memória dela", indaga e constata o ator em referência à sua mãe. Da minha casa, eu também fiquei pensando: será que as nossas histórias só existem enquanto houver outras pessoas que possam contá-las também? O quanto há de nós na lembrança dos outros, mesmo que olhares diferentes produzam narrativas distintas?
Tudo isso me fez pensar sobre o quanto o fim do ano é uma época de resgatar memórias. Eu me lembro do brigadeirão que a minha mãe fazia de sobremesa para o Natal e do seu enorme prazer de saborear rabanadas ainda quentinhas na tarde do dia 24 de dezembro. Aliás, ela sempre amou o ritual do café com bolo de bolo recém-saído da quentura do forno.
Também me recordo dos tradicionais cliques ao lado dos meus dois sobrinhos na árvore de Natal. Eles foram crescendo e, a cada ano, a decoração se tornou menor perto deles. Em datas assim, eu também recapitulo muita coisa que nunca foi fotografada por câmeras e mesmo assim estão guardadas nos meus porta-retratos imaginários, com aquela moldura retrô.
No domingo que vem, aliás, na hora da troca de mimos entre a família, já imagino que ganharei o livro do Selton Mello que pedi de presente de Natal. Mas aproveito este texto para registrar mais um desejo: ao destino, peço que me permita salvar os novos álbuns da minha existência.
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