Afinal, sou da tese de que nós mesmos já somos motivos suficientes para festa. Por que esperar o fim de semana, as férias, a ocasião dos sonhos? Ver beleza na rotina é o que me instiga Arte: Kiko

Teve louça tirada do armário da sala, daquelas do jogo de jantar guardado para ocasiões especiais. Mas, cá entre nós, eu uso um prato desse conjunto no dia a dia mesmo, com a desculpa de que ele está quebradinho em algumas partes. Afinal, sou da tese de que nós mesmos já somos motivos suficientes para festa. Por que esperar o fim de semana, as férias, a ocasião dos sonhos? Ver beleza na rotina é o que me instiga.
É claro, no entanto, que as visitas dão um ar diferente à casa. Até comentava outro dia durante a aula de pilates que não costumo receber pessoas inesperadamente. Quem chega geralmente avisa. A não ser os meus irmãos, sobrinhos... Aí não precisam de comunicados, só chegam mesmo.
O fato é que a Sexta-Feira Santa começou com a casa um pouco menos desorganizada do que de costume. Cama feita cedinho, arrumando uma ou outra coisa daqui e dali. Foi dia de tirar as travessas maiores do armário, lavando-as antes de colocá-las na mesa. Aliás, também sou da tese de que toda casa deve ter alguma bagunça, mas a gente se esmera para mostrar ao outro um pouco de organização na nossa desordem. E também há beleza nisso: preparar-se para uma chegada é prestigiar quem vem.
Assim, aquela sexta-feira teve visita rápida de primo, mas o bastante para que a sua filha pequena se encantasse com o shih-tzu dos meus sobrinhos e saísse chorosa pelo desejo não realizado de ficar com "aquele cachorro". Definitivamente, há na infância uma pureza que a gente perde quando cresce. Afinal, os protocolos da tal vida adulta vão nos moldando de um jeito ou de outro.
Teve também o cachorro embaixo da mesa na hora do almoço, já descrente de que sobraria alguma comida para ele. E conversas. Muitas, aliás. Gosto daqueles papos que atravessam a mesa de uma ponta a outra, de gente que ri e que fala de sonhos em um tom que todos conseguem ouvir. Assim, com a família reunida para o almoço, trouxemos recordações de viagens feitas juntos. De passeios que um já fez e quer levar o outro. Ou daqueles rolés que todos querem repetir juntos.
Foi assim quando surgiu a lembrança de um hotel-fazenda na Serra Fluminense para onde eu ia na infância com toda a família. Meu pai disse que quase ganhou um campeonato de sinuca por lá. Garantiu que era craque no jogo. Mas parece que seu desempenho na hora decisiva ficou comprometido por alguns drinques a mais servidos nos momentos de descontração.
Aquela Sexta-Feira Santa teve muita coisa. Teve até brigadeirão, que era a sobremesa que a minha mãe costumava fazer no Natal. Poderia não ser exatamente a receita dela, mas era a sua lembrança da forma mais doce possível. Aliás, já escrevi isso em algum momento, mas tenho mania de repetir histórias.
Aquele feriado também teve cadeiras da cozinha se juntando às da área, onde almoçamos para comportar a família que cresce, com a chegada da namorada do meu sobrinho mais velho.
Era uma sexta-feira com muito do passado e muito do presente. E eu cheguei ao fim daquele dia pensando que não é a viagem ao tempo decorrido que nos faz mal. A questão é gostarmos tanto dela a ponto de desejarmos ancorar em algo que já se foi. Eu, cheia das teses nem sempre comprovadas, também tenho outra: talvez seja uma arte saber ir lá atrás, rememorar e voltar ao presente. Eu tento praticá-la.