Essa história me fez lembrar dos momentos da infância em que, ao descobrir a nossa derrota anunciada em algum jogo, temos a vontade de embaralhar todas as peçasArte: Kiko

Era segunda-feira de manhã e eu já havia iniciado a minha conversa com o meu amigo Macarrão. O diálogo se passava por ligação telefônica mesmo, do meu celular para o número fixo dele — quem ainda tem a relíquia de um telefone em casa? Do outro lado da linha, ele esbanjava a sua felicidade pela vitória da véspera do Botafogo, seu time de coração, sobre o Flamengo. Aliás, para ele, vencer este clássico é como ganhar um campeonato à parte. "Já acordei, tomei café, vi todos os programas esportivos e daqui a pouco vou à rua comprar o almoço vestido com a camisa do Botafogo. Inclusive, hoje é dia 29, e tem nhoque da fortuna. Depois volto para assistir aos outros programas esportivos".
A vitória do Alvinegro muda a programação dele. Se o Glorioso não ganha, ele não sintoniza a TV em nenhum canal em que possa ouvir comentários sobre a derrota. Entendo como um trato que ele faz consigo mesmo: seu time pode perder e ele pode até admitir que foi merecido, mas ninguém mais tem o direito de dar pitaco sobre isso. Um revés do clube da Estrela Solitária praticamente acaba com a semana dele.
Essa história me fez lembrar dos momentos da infância em que, ao descobrir a nossa derrota anunciada em algum jogo, temos a vontade de embaralhar todas as peças. Sejam de tabuleiro, dados ou demais itens. É como se quiséssemos colocar fim aos vestígios de que o outro levou a melhor. Temos a tendência a interromper a brincadeira que insiste em nos dizer que não fomos os vencedores.
Hoje, olhando pelo retrovisor da minha vida, suspeito que eu tinha pavor de competir. Em qualquer brincadeira como pique-esconde, eu queria ser para sempre café com leite. Ou seja, eu participava, mas temia a sensação de ser "descoberta" nesses jogos. Assim as regras não valiam para mim. Eu nunca perderia, mas jamais venceria também.
Já na fase adulta, até tentei ser o mais neutra possível em muitos anos da minha vida, talvez revivendo o papel da infância. Assim, eu passaria ilesa ao olhar do outro. Curiosamente, quando destravei a barreira de me mostrar ao mundo e fui me conectando com pessoas que já faziam parte do meu dia a dia, uma colega de profissão comentou que até então não tinha nenhuma imagem formada sobre mim. Nem para o bem nem para o mal. Talvez eu tenha sido de fato café com leite.
Mas foi justamente como adulta que a vida me impôs os maiores tropeços, dificuldades, obstáculos... Não dava mais para dizer que comigo não valia. Por várias vezes, eu quis esbravejar: "Não quero mais brincar. Quero voltar à minha versão infantil, com tudo o que ela representava". Mas aí descobri que não se pode misturar as peças da realidade e jogá-las para o alto.
Curiosamente, hoje olho as redes sociais e vejo que ainda queremos competir para ver quem mostra a melhor felicidade, a família mais harmônica, o amor mais devotado, a viagem mais incrível, a vida mais equilibrada... Tentamos nos enganar na imagem de que damos conta de tudo. É só "querer, poder e conseguir", dizem por aí.
Como somos todos feitos também de derrotas, nessas horas, eu tento abrir mão desse jogo de faz de conta. E aí, por um motivo diferente, eu me lembro do meu amigo Macarrão: mudo a sintonia, passando para outro perfil ou parando de ver a rede social naquele instante. Afinal, pode ser uma pequena vitória trocar o canal daquilo que não nos faz bem.