Fui assistindo à peça, rindo e me deliciando com a maneira leve como o espetáculo trata do inevitável conflitoArte: Paulo Márcio

No domingo passado, a casa ficou cheia para comemorar os 74 anos de vida do meu pai. Aqui estavam os três filhos, a nora, os dois genros, os dois netos e o amigo de um deles. Nem deu espaço para todo mundo na área externa na hora do almoço, e os meninos recorreram à mesa da sala. Teve pudim de leite entremeado com ameixas e calda. Teve bolo indicando a idade. Teve cerveja e refrigerantes.
Curiosamente, nos preparativos para a celebração, vieram as lembranças e também os risos das incursões atrapalhadas — minhas e da minha irmã — ao supermercado. Meu pai contou que certa vez eu estava na seção de hortifruti e telefonei para dizer que o chuchu não estava macio e se poderia levar assim mesmo. Ele também contou que a minha irmã, em outra ocasião, trouxe cinco dentes de alho ao invés de cinco cabeças, como ele havia pedido.
Escrevendo este texto, me lembro do que disse a nossa querida amiga Lurdinha, das Minas Gerais, quando minha mãe partiu: "Carlinha, você sabe que agora vai ser a dona de casa, né?" Eu ainda nem tinha pensado nisso, mas era mesmo verdade. Acabei herdando muitas tarefas que eram da minha mãe. Além disso, sem a presença dela, a convivência com o meu pai também ficou mais intensa, especialmente na pandemia, quando os laços em casa ficaram mais acentuados.
A pandemia acabou, mas até hoje o nosso (des)encontro se mantém. Ele diz que eu não converso direito; eu argumento que ele não me ouve. Mas dialogamos mesmo assim, com os ruídos e o amor que permeiam a nossa relação. Talvez por isso eu tenha me reconhecido em boa parte da peça que vi no Teatro Adolpho Bloch, na Glória, naquele mesmo domingo à noitinha.
Ao lado da filha, Giulia Bertolli, a atriz Lilia Cabral encenava 'A Lista', espetáculo que marca justamente o encontro entre duas vizinhas de gerações muito diferentes. Durante a pandemia, a jovem Amanda, interpretada por Giulia, se oferece para fazer as compras de Laurita, personagem de Lilia. Laurita reclama que Amanda tem dificuldade para entender a diferença de chicória e espinafre, o que me fez lembrar do meu comentário sem noção sobre o chuchu. E assim sorri novamente de mim mesma.
Durante a conexão inesperada com Amanda, Laurita fala das conversas pelo zap com as amigas — aliás, a personagem de Lilia Cabral é uma professora aposentada do estado, como a minha mãe era. Assim como Laurita, o meu pai também tem o seu passatempo no celular, no caso os vídeos do TikTok.
Fui assistindo à peça, rindo e me deliciando com a maneira leve como o espetáculo trata do inevitável conflito. Também foi imediato o pensamento que me levou para a lembrança de uma incrível jornalista que trabalhou comigo nos meus tempos de repórter esportiva. Aposto que ela amaria a peça que se passa em Copacabana, mesmo bairro em que mora. Mãe de dois rapazes, ela sempre nos divertia na redação do jornal com suas histórias de família que poderiam estar ali naquele palco. Afinal, vida e arte se confundem a tal ponto que não sabemos quem surgiu primeiro: a realidade ou a encenação.
Em diversos momentos do espetáculo, aliás, fiquei pensando em como deve ser especial para as duas atrizes, mãe e filha, contracenarem juntas. É preciso ter sintonia para dialogar nos bate-papos ensaiados do roteiro. E também nas conversas da vida real. É preciso ter paciência e persistência para uma convivência de gerações e mundos tão distintos. Vale para o palco e para a vida.
Ao pensar nesta crônica, sorri sozinha mais uma vez. É curioso imaginar que nasci depois do meu pai, mas não acompanho o Tiktok. Talvez se eu estivesse conectada aos vídeos da rede social, eu teria aprendido algo sobre chuchu. Ou simplesmente sobre o fato de que nem todos os legumes, frutas e frutos da vida se revelam maduros do mesmo jeito.