O texto brilhante da australiana Suzie Miller é interpretado com maestria pela atriz Débora Falabella, com direção de Yara de NovaesArte de Kiko sobre fotos Jorge Bispo/ Divulgação e Annelize Tozetto?/ Divulgação

Quando a atriz Débora Falabella começou a encenar a peça 'Prima Facie' em uma dessas noites amenas de outono, eu estava um pouco angustiada com questões minhas. Confesso que fiz certo esforço no início do espetáculo para prestar atenção no que vinha do palco do Teatro Adolpho Bloch, na Glória. Precisava deixar os outros sentimentos lá fora. Felizmente, logo me esqueci daquilo que me incomodava e fui capturada pela atuação de Débora. Afinal, o texto brilhante da australiana Suzie Miller é interpretado com maestria pela atriz, com direção de Yara de Novaes.
Sim, a arte também é um momento de concentração, tanto da plateia quanto dos artistas. Aliás, pouco antes de a peça começar, ainda com as cortinas fechadas, a voz de Débora ecoou pelo teatro pedindo que o público desligasse os celulares, explicando que a luz dos aparelhos atrapalha a concentração dos atores. "Que, neste caso, sou só eu", disse ela.
"Só ela", na verdade, tem o poder de englobar muitos papéis. Em atuação solo, a atriz vive a advogada Tessa e nos faz perceber todos os ambientes em que está: a casa da mãe, o bar, o escritório de advocacia, a sua casa, a sala de aula da faculdade... Através dela, conhecemos outros personagens. A descrição de cada um deles, muito bem narrada por Débora, nos faz imaginá-los de fato: sua mãe, seu irmão, seus colegas de classe sentados à sua direita e à sua esquerda na sala. A riqueza de detalhes nos permite entender quem são as pessoas que a cercam, o cenário e as ações. Assim, também sabemos mais de Tessa.
A personagem, aliás, é um jovem advogada brilhante, que se destaca em sua carreira defendendo acusados de todo tipo de crime, inclusive violência sexual. 'Prima Facie' é um termo jurídico em latim que pode ser traduzido como "à primeira vista". Mas tudo muda quando Tessa sofre um estupro e se vê no papel de vítima. Neste lugar em que muitas mulheres são desacreditadas, ela se percebe incapaz de fazer um relato linear, com detalhes racionalizados. A violência lhe causa desordem em muitos níveis, e a advogada experimenta a vulnerabilidade como mulher diante de um tribunal.
Com atuação brilhante, Débora consegue nos silenciar com a forma triste como mostra a vítima sendo violentada de todas as maneiras: na alma e no físico. Também incorpora a dor de percorrer detalhes, ações e pormenores. A ponto de a própria advogada se perguntar se poderia ter feito algo para evitar aquilo. Recentemente, aliás, o STF proibiu a prática de desqualificar mulheres vítimas de crimes sexuais em audiências judiciais e investigações policiais.
Ao fim do espetáculo, os aplausos ecoaram de uma forma intensa e contínua pelo teatro. Até tentei religar o celular para gravar aquele momento, mas resolvi me render à chance de aumentar o volume daquelas palmas de forma efusiva. Levantei os braços e aplaudi com vontade, muito além de um simples protocolo. No palco, a atriz retribuiu a reverência da plateia e fez um alerta para o crime de violência contra a mulher.
Voltei para casa impactada por aquela atuação. E me lembrei de uma entrevista recente de Denise Fraga à TV Brasil: ela falava sobre o mundo ruidoso em que vivemos e destacava a força dos palcos. Dizia que o teatro é fascinante ao propor que a gente não esteja com o celular para ganhar tudo aquilo que a arte pode nos dar. Denise está certa. Tanto que a atuação de Débora me capturou naquela noite. Curiosamente, ao fim da peça, reparei em uma cena. Enquanto o público saía da sala, uma moça comentou com a amiga: "Não deixei de prestar atenção em nenhum momento". É isso: a atuação de Débora não dá brechas para distrações. Bendita seja a arte que nos faz pensar!