Por alguns instantes, fiquei apenas admirando e refletindo sobre a beleza do antigo em um mundo de tantas modernidades. Achei incrível que Daniel Boaventura tenha virado um sucesso com um show em que resgata músicas de outras épocasArte: Paulo Márcio
Bailes da vida
Até que, em determinado momento, o cantor deu a deixa e muita gente se levantou para dançar. As tais pistas imaginárias se uniram em um grande salão
A plateia ainda estava sentada e bem comportada quando o ator e cantor Daniel Boaventura começou a entoar clássicos em uma casa de espetáculos da Barra da Tijuca. Era véspera do Dia das Mães. No repertório, Frank Sinatra, Barry White e tantos outros nos faziam viajar no tempo. Aliás, fico sempre admirada com o poder da arte de atravessar gerações. Eu nem era nascida quando muitas daquelas canções foram lançadas, mas bastava ouvir os primeiros acordes para identificar uma delas. Assim, elas bailavam lindamente na minha memória. Reparei nas pessoas ao redor e logo fantasiei que cada um ali tinha uma pista de dança imaginária em sua mente. Quantos momentos poderiam ter sido embalados por aquelas trilhas sonoras? Quantos encontros, desencontros, amores e desamores evoluíram através daquelas músicas?
Assim, no salão dos meus sonhos, entraram em compasso momentos dos quais ouvi falar e tantos outros que vivi. Olhei para algumas senhoras ao redor, antes mesmo de o show começar, e observei as fotografias que tiravam juntas na câmera do celular. Na minha mente, o ritmo logo se transformou em saudade: se estivesse entre nós, minha mãe certamente enviaria uma foto daquela noite para as amigas Superpoderosas, nome do grupo de WhatsApp que mantinha com algumas professoras que trabalharam com ela. Provavelmente, também mandaria o clique para as suas colegas do CIEP em Saracuruna, em Caxias, outra escola em que deu aula. Ainda comentaria com a Emanuelle, com a Cátia e com outras amigas dela com quem mantenho contato.
Curiosamente, logo que Daniel Boaventura começou a entoar a sua voz marcante, também reparei um pouco mais na cadeira ao meu lado direito. Estava vazia. Nela, eu e minha irmã colocamos nossas bolsas e uma echarpe que havia levado. Afinal, quem não se lembra do conselho clássico das mães: "Coloca um casaco! Pode esfriar"? Simbolicamente, imaginei que aquele lugar era dela. Afinal, a lembrança também nos faz companhia.
Dessa forma, segui dançando através do tempo. Ainda sentada, eu mexia os ombros de um lado para o outro, acompanhando o balanço das canções. Daniel entoou 'Kiss and Say Goodbye', do grupo 'The Manhattans'. Descobri que a música foi lançada em 1976, mas ainda hoje, em 2024, há quem reconheça seus acordes. Foi também inevitável pensar que a minha mãe poderia ter dançado uma daquelas melodias em algum baile da sua época. Até imaginei que ela rodopiava lindamente, vestindo alguma roupa feita pela minha avó, que era uma costureira das boas.
Entre tantas melodias, Daniel nos apresentou 'The best part of the show' ("A melhor parte do show'), composição dele em parceria com Marcel Camargo. Segui ouvindo e também rindo do bom-humor do artista diante dos galanteios mais ousados da plateia. "Gente, amanhã é Dia das Mães! Realmente, o Rio de Janeiro não é para amadores. E olha que eu sou baiano", brincou Daniel, diante dos elogios mais audaciosos.
Olhei para trás e vi uma senhora, sentada na sua cadeira, acompanhando o ritmo com as mãos: primeiro, pra lá e pra cá e, depois, com aplausos. A plateia bailava como podia e desejava. Entre o riso e as canções, a noite evoluía como uma grande celebração. Até que, em determinado momento, o cantor deu a deixa e muita gente se levantou para dançar. As tais pistas imaginárias se uniram em um grande salão.
Em pé, uma senhora mantinha os olhos fixos no palco. Atrás de mim, outra gritou: "Daniel, canta 'New York, New York'". E não demorou muito para ela ter seu pedido atendido. Inclusive, quando essa canção começou a tocar, outra memória bailou no meu coração. Logo, virei para a minha irmã e lhe disse: "Você dançou essa música na apresentação de jazz!" Sim, essa recordação nunca se apagou da minha mente: minha irmã era adolescente quando ensaiou a coreografia ao som da voz inigualável de Frank Sinatra.
Realmente, a arte tem o poder de perdurar através do tempo. 'New York, New York' está lá no passado, mas também no presente de quem ainda canta seus versos. Da mesma forma que 'Last dance' ('A última dança), famosa na voz de Donna Summer, segue bem viva.
Por alguns instantes, fiquei apenas admirando e refletindo sobre a beleza do antigo em um mundo de tantas modernidades. Achei incrível que Daniel Boaventura tenha virado um sucesso com um show em que resgata músicas de outras épocas. Pode ser vintage, retrô, nostálgico... Seja como for, só espero que essa tendência de revisitar o passado nunca saia de moda.
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