Sorte que, vez ou outra, alguém ainda entoa as canções por aí. Acontece com o carro do ovo do subúrbio, que toca 'A galinha magricela', como bem lembrou o meu namoradoArte: Paulo Márcio

O sol de outono me aquecia na medida certa na manhã do último domingo. Eu havia saído do mercadinho e fazia a pé o caminho em direção à farmácia, antes de voltar para casa. Naquele percurso dominical, avistei um garoto, já adolescente, se preparando para empinar uma pipa no céu azul do subúrbio carioca. Acabei me distraindo com a ação dele, que rapidamente colocou o brinquedo para bailar no ar. Assim, cheguei à porta de casa constatando que havia me esquecido de ir à drogaria.
Peguei o celular e logo procurei no Google o que consta no Estatuto da Criança e do Adolescente sobre o direito ao lúdico. Não demorei a achar. Está lá no Artigo 16 do ECA, de 1990, decretando que toda criança e adolescente têm direito de "brincar, praticar esportes e divertir-se". Era esse o pensamento que me acompanhava desde sábado, quando reencontrei as músicas que marcaram minha infância através do espetáculo 'Balão Mágico Sinfônico', da Orquestra Petrobras Sinfônica, no Teatro Clara Nunes, na Gávea.
Quando entrei no espaço, parecia que eu havia embarcado em uma máquina do tempo. Com a orquestra regida pelo maestro Felipe Prazeres, eu me lembrei muito dos bailinhos infantis de Carnaval. Hoje acho curioso o pavor que eu tinha de bate-bola na época da folia. Certa vez, minha mãe até chamou um deles e pediu que tirasse a máscara para me tranquilizar. Mas não foi o bastante para me livrar do medo daquela figura.
Assim, acolhida por memórias afetivas, reparei na plateia repleta de pequenos. Muitos deles já corriam, pulavam e dançavam no vão entre uma fileira e outra de poltronas. Alguns estavam nos seus próprios lugares, mas em pé. O bom de ainda não ter crescido é que a gente não atrapalha a visão das pessoas atrás de nós. A questão é que a gente espicha e toma consciência de que podemos ser inoportunos. Também não dá mais para tirar os calçados e ficar só de meia no teatro como fez uma criança ao meu lado. Pelo menos aprendemos assim.
Achei o máximo cantar novamente as músicas que embalaram a minha infância, eternizadas pelo grupo que tinha Simony, Mike, Tob e Jairzinho. Sorte que, vez ou outra, alguém ainda entoa as canções por aí. Acontece com o carro do ovo do subúrbio, que toca 'A galinha magricela', como bem lembrou o meu namorado.
Fiquei reparando na reação das crianças ao meu redor, à medida em que festejava o meu passado. Ao fim de 'Coração de Papelão', os cantores Juliana Franco e Raphael Rossatto se abraçaram e alguns pequenos pediram: "Beija, beija". Aliás, há quanto tempo eu não ouvia "Se essa rua fosse minha/ Eu mandava ladrilhar com o brilho dos seus olhos/ Só pro meu amor passar..."! Também amei quando entoaram 'Lindo Balão Azul': "Pegar carona nessa cauda de cometa/ Ver a Via Láctea, estrada tão bonita/ Brincar de esconde-esconde numa nebulosa..."
Saí do teatro feliz, renovada, mais criança e mais menina. E também mais reflexiva e adulta. Afinal, quando a gente cresce — não necessariamente em tamanho — parte da ilusão vai embora. O que aquelas crianças viveram ali é o que todas as outras merecem receber: o contato com o mundo lúdico. Todos os pequenos precisam ter direito à metáfora, à fantasia, à imaginação e à possibilidade de ter amigos imaginários. Afinal, em tudo isso mora o sonho.
No entanto, diariamente temos notícias de infâncias que não são as ideais. Para muitos pequenos, a realidade é dura, cortante e cruel. E era justamente sobre isso que eu pensava no domingo de manhã quando deixei a farmácia ficar para trás no meu caminho e fui capturada pelo menino que colocava a pipa no ar. O céu dos miúdos deveria ser exatamente assim: feito de brinquedos, sejam eles uma pipa ou um lindo balão azul.