Fiquei pensando no quanto é belo reencontrar a escrita de quem amamos em tempos onde desconhecemos a letra do outro. Deixamos de escrever cartas, assinar cheques... Arte: Kiko

Já era noite quando a foto surgiu no meu WhatsApp aumentando a lista de conversas e memórias que tenho com a minha irmã. Imediatamente, reconheci a letra, linda e legível ao meu coração: era da minha mãe, em seu livro de receitas. Enchi o bate-papo de figurinhas carinhosas, com coração, e escrevi: "É da minha mãe!". Minha irmã logo respondeu, indicando risos: "É meu. Ela me deu".
Esta conversa ficou na memória até que, em um dia desses, resolvi procurar algum papel na gaveta da cômoda do quarto do meu pai onde ficam todos os documentos da família que a minha mãe deixou guardados. Em um envelope de papel pardo, a mesma letra, bem maior, desenhada com caneta vermelha, indicava que ali estava parte da minha trajetória. "Carla. Diplomas": foi o que a minha mãe havia escrito.
A palavra "diplomas", no plural, não significa que eu tenha feito várias faculdades. Mas são documentos que atestam a minha aprovação em provas de inglês ou outros certificados que ganhava quando tinha boas médias durante o Segundo Grau. Todo o orgulho dela estava ali, intacto, naquele envelope.
Fiquei pensando no quanto é belo reencontrar a escrita de quem amamos em tempos onde desconhecemos a letra do outro. Deixamos de escrever cartas, assinar cheques... Talvez por isso eu faça tanta questão dos bilhetes manuscritos.
Também me recordo que, pouco tempo após a morte da minha mãe, eu e minha irmã fomos almoçar em um restaurante no Centro do Rio. Depois de irmos embora, ela se deu conta de que havia esquecido o seu guarda-chuva. E não era uma sombrinha qualquer — sim, eu ainda uso a palavra sombrinha! Era um presente que ela havia ganhado da minha mãe no seu aniversário do ano anterior. A aflição por ter esquecido o objeto foi grande. Até que, finalmente, entramos em contato com o restaurante e constatamos que o guarda-chuva ainda estava lá. Ufa!
Todas essas relíquias valem tanto! E não é uma quantia universal, medida por moedas. Só nós sabemos o quanto custa cada joia dessa. Da mesma forma, também guardo com carinho um conjunto de blusa e calça com estampa de onça que foi da minha avó materna. Aliás, ela costurava tecidos e afetos como ninguém. Sempre que comprávamos um roupa nova, íamos até sua casa para buscar sua aprovação. Só me lembro de ela dizer que estávamos lindas, assim como minha mãe fazia. A aliança da minha avó, inclusive, também está guardada comigo: linda, delicada, adornada pelos efeitos do tempo e da lembrança.
Em cada objeto desses, há uma história, um elo, um laço... O amor está nas heranças mais singelas, não necessariamente naquelas compartilhadas em cartórios. Riqueza é o caderno de receitas com papel levemente envelhecido e escrito com a letra da minha mãe. A mesma caligrafia com que ela assinou, cheia de orgulho, o envelope com os meus diplomas. Sua escrita carrega amor, assim como o ato de presentear a minha irmã com um guarda-chuva em um dia chuvoso de outubro. E foi com esse mesmo afeto que a minha avó costurou a roupa que nunca sairá de moda para mim. Afinal, a saudade é uma tendência eterna.