Mas, ali, no karaokê, com a minha voz amplificada, ficou escancarada a minha falta de ritmo. Talvez seja assim na vida: caminhar em parceria pode ter uma afinação melhor, embora a gente precise de um tempo a sós para entender issoArte: Paulo Márcio
O coro da convivência
É bom ficar só de tempos em tempos. Para entender melhor o que me constitui. Para sentir saudade do que parece corriqueiro, mas pode ser extraordinário, como o ritual do meu pai de preparar o café todas as manhãs
Meu pai vive com sons. São muitos. Todos ao mesmo tempo. Na televisão do quarto, no rádio da cozinha e em outro aparelho no terraço da casa. Sem falar no TikTok, em voz bem viva no seu celular. Assim, quando ele rumou para a Região dos Lagos no fim do ano, a casa silenciou. Sozinha, passei a ouvir melhor os timbres da minha própria existência. Deu para cantar embaixo do chuveiro e escutar um pouco mais a minha própria voz. Fiz a minha bagunça sem ter que alguém verbalizasse isso para mim no exato momento em que estava tudo espalhado pela casa. Mas, na verdade, a minha mente ecoava isso. Por outro lado, amanheci e constatei que o café não estava na mesa da cozinha como ele faz todos os dias.
É bom ficar só de tempos em tempos. Para entender melhor o que me constitui. Para sentir saudade do que parece corriqueiro, mas pode ser extraordinário, como o ritual do meu pai de preparar o café todas as manhãs. Deve durar uns 40 minutos mais ou menos, e ainda não sei descrever todo o passo a passo. Eu reclamo de esperar, mas na verdade é bom ver a minha xícara já prontinha e separada ao acordar. E não estou falando exatamente sobre o café, que adoro, mas sobre o cuidado diário dele.
No silêncio da casa, constatei que amo meu pai, mas talvez goste e desgoste, na mesma proporção, dos sons que ele coloca pela casa. Ouvir a si mesmo é uma tentativa de se entender. Aliás, ouso dizer que as vozes dentro de nós ecoam a todo instante, mas há momentos em que tentamos abafá-las para não perceber os ruídos que nos constituem. Às vezes, alimentamos a ilusão de que somos constituídos só de melodias harmoniosas. Mas em algum momento algo em nós grita por ajuda. Não necessariamente com sons. Nossas emoções também falam através do nosso corpo, dando sinais de que não estamos olhando para elas. Ou pela escrita, como costumo fazer.
Assim, pensando nos tons que permeiam a minha jornada, eu me surpreendi e também me diverti na virada do ano em um karaokê improvisado na televisão, com uma caixa de som e um microfone recém-comprado. Na sala de casa, ainda na tarde do dia 31 de dezembro, testei a brincadeira e constatei como é difícil cantar sem o acompanhamento dos artistas, como faço sempre que aciono o Spotify. Eu posso jurar que sei cantar 'Equalize', da Pitty, quando ela entoa a música comigo. É praticamente um coro de cumplicidade entre nós duas: "E eu acho que gosto de você/ Bem do jeito que você é". Mas, ali, no karaokê, com a minha voz amplificada, ficou escancarada a minha falta de ritmo. Talvez seja assim na vida: caminhar em parceria pode ter uma afinação melhor, embora a gente precise de um tempo a sós para entender isso.
Sem nenhum talento para a música, eu optei mesmo pela diversão antes da chegada de 2025. Quando escolhia uma canção mais fácil de acompanhar no karaokê, eu brincava dizendo que tinha encontrado o meu tom. Sentada em uma cadeira de praia na sala, confirmei que o sol amanhece dentro de nós e não necessariamente lá fora. Cantei 'Coração Pirata', hit do Roupa Nova, 'Caju', de Liniker, 'Por Onde Andei', de Nando Reis, e 'Desejo de Amar', famosa com Eliana de Lima e o refrão 'undererê' que marcou a sua carreira. "Foi sem querer, que derramei toda emoção/ Undererê, e cerquei teu coração...". Aliás, como é bom soltar a voz sem medo de julgamento e fazer algo sem a necessidade de ser profissional. Arrisquei até 'Escrito nas Estrelas', sucesso na voz de Tetê Espíndola, embora alguém tenha dito: "Essa é difícil". Que nada! Quem vai dizer que eu não alcancei todas as notas da alegria?
Quando o relógio já se aproximava da meia-noite, a música da virada no karaokê foi escolhida com o desejo de que este ano seja generoso com a gente: 'O Que É, O Que É', de Gonzaguinha. Um simbolismo potente para marcar a chegada de um novo ciclo: "Viver e não ter a vergonha de ser feliz/ Cantar, e cantar e cantar/ A beleza de ser um eterno aprendiz". A letra, tão emblemática, foi entoada em um coro de quatro vozes que ocupavam aquela sala. Juntos, unimos timbres de diferentes trajetórias, melodias, ruídos e silêncios, em uma prova de que a caminhada jamais terá uma nota só.
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