Eu teria sido filmada chegando de muletas nas duas vezes em que quebrei os ossos do pé e reaprendendo a andar sem elas, após a imobilização. Assim, eu lembraria os momentos em que me reconstruí internamenteArte: Kiko
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Uma câmera com foco em algum lugar do meu quintal teria me visto chegar feliz da vida em casa em muitas ocasiões. Ou triste em outras
Confesso que, de cara, a proposta me pareceu monótona: um filme de 1h44 de duração em que o enquadramento não muda em momento nenhum. Em cartaz nos cinemas, a obra, intitulada 'Aqui', é filmada sempre do mesmo ângulo e mostra gerações conectadas por um único espaço. Assim, a trama acompanha várias famílias que passaram por ali ao longo de um século, especialmente a vida de Richard e Margareth, casal formado pelos atores Tom Hanks e Robin Wright. Os dois têm sua história contada a partir de uma câmera fixa em um ponto da sala da casa onde moravam. Na verdade, Richard e Margareth passaram a viver juntos no lar dos pais dele, quando a filha do casal chegou sem que eles tivessem planejado a gravidez.
Da poltrona do cinema, o telespectador vê sempre o mesmo ângulo: a casa com um janelão no fundo, revelando parte da rua. É possível acompanhar Richard chegando à sala para apresentar Margareth aos pais; o casal namorando no sofá, os irmãos menores flagrando a cena dos abraços mais quentes, e assim por diante. Prometo que não darei spoiler! Assim, o longa não fica na mesmice e não vemos somente uma perspectiva da história. A gente entende o lado de Richard e, depois, o de Margareth, sem que a câmera tenha se movido um centímetro de lugar. Também compreendemos os pais dele. Uma prova de que podemos exercitar o olhar sobre a vida através do coração.
Ainda na sala do cinema, fiquei refletindo sobre como aquele filme pode mexer especialmente com alguém que tem uma história de muitos anos com a mesma casa. Eu sou assim. Morei em outro lugar ainda bebê, mas não tenho recordação de lá. Depois, vim para casa que me abriga até hoje. A força do meu avô materno ajudou minha família a erguer a construção e o sonho.
Assim, fiquei pensando que, se a gente tivesse colocado uma câmera em um ponto só do terreno, teríamos registrado as mais diferentes histórias da nossa família ao longo de muitos anos. A tal máquina de gravar imagens poderia ter sido colocada com foco na escada que entrelaça uma parte da garagem com a área da minha casa. Ela teria registrado o meu avô subindo e descendo com material de obra — ele era alto, forte e esguio.
Também teríamos gravado momentos meus e da minha irmã. Temos fotos ali. Um clique, por exemplo, revela parte da área da nossa casa ainda no tijolo. Enquanto outro, não exatamente do mesmo ângulo, mostra nós duas, com detalhe para o chão de caquinhos de azulejo da garagem e para as plantas abrigadas em galões de tinta improvisados como vasos. Há também registros com o nosso irmão, ainda bebê, em um carrinho. E outro com a minha avó materna também ao lado dele.
Mas se a câmera fosse colocada em um ponto do nosso quintal? Também pensei nisso! Quantas histórias teriam sido eternizadas em vídeo? Com certeza, a gravação teria focado as minhas brincadeiras por ali, até com as amigas que apareciam em épocas de aniversário. Teria flagrado o meu crescimento, as tantas vezes que entrei e saí do carro dos meus pais e, depois, as muitas ocasiões em que repeti esse gesto, já maior de idade e ao volante.
Uma câmera com foco em algum lugar do meu quintal teria me visto chegar feliz da vida em casa em muitas ocasiões. Ou triste em outras. Teria me visto olhar as mensagens no celular com o carro já estacionado na garagem. Partir alegre para mais um dia de vida. Ou desanimada pelas angústias que pareciam pesar demais sobre os meus ombros. Ah, e teria visto os animais que nos fizeram companhia nesses anos todos: o trio de cães da raça boxer; um pitbull e um pastor canadense que acabou por adotar uma gatinha nos últimos anos de vida. Eu teria sido filmada chegando de muletas nas duas vezes em que quebrei os ossos do pé e reaprendendo a andar sem elas, após a imobilização. Assim, eu lembraria os momentos em que me reconstruí internamente.
O filme com Tom Hanks e Robin Wright me fez constatar que, mesmo que o espaço físico mude, ele estará registrado para sempre como um lugar que fez parte da nossa história. Afinal, muito daquilo que vivemos está na casa onde crescemos e compartilhamos nossas memórias. Ou bem 'aqui', dentro de nós.
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